sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Coisas do Haiti


Algumas experiências marcam nossas vidas definitivamente, como divisores de águas. E o tempo de um elogio não está em um momento somente, mas está sim no eterno presente. Isto porque um reconhecimento verdadeiro, como um elogio é algo que nunca se perde; grava-se como pintura nas paredes do coração para ficar no devir eterno, soprando aos ventos. A admiração é quando luzes diversas se unem para ficarem mais fortes e luminosas. E é disto, do elogio, que ofereço aqui.
Quando houve o terremoto no Haiti eu também estremeci. Eu tinha amigos lá. Demorou-se alguns dias para se ter notícias consistentes de quem havia passado por ele, ou se perdido nele. Na minha própria comoção fiz minha inscrição junto à Associação Médica Brasileira para ser voluntário e prestar ajuda, que não foi necessária. O que pouca gente sabe é que o Coronel Cysneiros, o Tenente Coronel Alexandre Santos, muitos tantos amigos, estudamos juntos, quando eu fiz parte da ativa do Exército Brasileiro. No meu íntimo não existe um ex-militar; existe um militar da reserva. E eu saí no início ainda da Academia Militar das Agulhas Negras somente porque queria ser médico, e não por não gostar da vida militar. A maioria continuou, e o Cysneiros e Alexandre entre eles. Em uma época em que os milicos estão em baixa, em que um soldado das Forças Armadas do Brasil já não chama muita atenção entre nós cidadãos, eles estavam lá no Haiti neste dia; o Coronel Cysneiros (à esquerda) faleceu no terremoto. Estudamos todos juntos. Não me proponho agora a opinar sobre se o Brasil deve ou não ter ações militares no exterior em conjunto com a ONU; tampouco a falar sobre o que pode intimamente fazer uma pessoa comum como nós todos, um soldado, deixar sua família por ter uma missão a cumprir. Meu elogio é na verdade para espalhar o próprio depoimento deste brasileiro salvo, que como muitos por aí não perdem a vida num segundo, mas que como nem tantos (ou raros) estão dispostos a sacrificá-la por acreditar no seu país e em seus valores. E este valor é peculiar a alguém que já passou pelas Forças Armadas. Ela não serve a governos, mas ao país, à Pátria. Sem também querer revolver rumores arrepiantes e arredios do período recente dos governos militares, foram estas Forças Armadas, desprestigiadas, sucateadas, mal remuneradas, sem efetivo, que ao longo de nossa história mantiveram a unidade geográfica de nosso país, ajudaram a manter nossa língua, e que praticamente forçaram a abolição da escravatura e a proclamação da República.
Mas chega. Segue o que o próprio Alexandre escreveu, narrado na 3.a pessoa. A vivência emocional daquelas horas não podem ser computadas nem em anos, e não me cabe falar do que senti ao ler sua mensagem; é ele quem está na foto ao começo desta crônica. A vocês, suas famílias o abraço meu e de todos ao que passaram pelos portões da EsPCEx e da AMAN. E meu singelo orgulho pessoal de, mesmo distante no meio de tantos jovens que sonhavam ser oficiais há tanto tempo, sinto-me ainda próximo o suficiente para chamá-lo de amigo, pelo elo da caserna que um dia uniu nossa turma, e relembrar de modo carinhoso, mas sem denunciar negativamente, que este tenente coronel teve um singelo, espirituoso, feio e engraçado apelido de “Negusa”!
Continue na Luz, e que Deus lhe abençoe sempre! Nosso país precisa de que todos os heróis do dia-a-dia, que ainda não têm consciência de seu percorrer no mundo, acordem para que nossos filhos possam ver o futuro sem mensagens de fim do mundo, mas de prosperidade.
Lourenço

O SALVAMENTO DO TEN CEL ALEXANDRE SANTOS
No dia 12 de janeiro de 2010, durante o terremoto ocorrido no Haiti, o Ten Cel Alexandre Santos encontrava-se no térreo, parte externa do prédio da ONU, juntamente com outros dois oficiais e um sargento.
Quando iniciou o tremor, cada um tomou um destino, em busca de segurança. Ele e um dos oficiais correram em direção à piscina abandonada. Ao saltarem em um desnível de uns 2 metros que havia, o Ten Cel Alexandre percebeu que não daria tempo de chegar até uma área segura e decidiu encostar-se na mureta, seguindo as técnicas de sobrevivência em caso de terremotos. O outro oficial continuou correndo e, infelizmente veio a falecer.
Encostado na mureta, o tenente coronel acompanhou o desabamento do prédio sobre sua cabeça. Adotou uma posição de proteção fetal e ficou aguardando o pior, pois não acreditava poder sair vivo de uma situação daquelas. Após intermináveis segundos de muito barulho, escuridão, poeira, temor, orações e esperança, percebeu que o desabamento havia terminado e que por algum motivo ele ainda estava vivo e consciente.
Vivo entre os escombros, fez um check-up de seu estado físico e percebeu que conseguia respirar, suas funções vitais estavam normais e que, a princípio não tinha perdido nenhum membro. No entanto não conseguia se mover, estava completamente preso. A única solução seria pedir por socorro, e foi o que fez em português, inglês e espanhol.
Após cerca de 30 minutos começou a ouvir vozes do lado de fora, acima de onde ele estava preso. Identificou-se e tentou guiar, a partir daí, o esforço de busca, mas o local em que se encontrava era de difícil acesso, centenas de toneladas de cimento, tijolos e ferro retorcido sobre sua cabeça dificultavam o trabalho das equipes de resgate.
Foram cerca de seis horas soterrado, alternando momentos de fé, esperança, dores por todo corpo, anestesia de uma das pernas, solidão, tristeza pelo futuro incerto, saudades, lamentação pelo que deixou de ser feito e principalmente pelo que deixaria de fazer junto à sua família. Durante todo esse tempo ocorreram diversos outros pequenos abalos que o deixavam muito temeroso.
Percebeu a chegada de uma equipe de resgate, vinda pela parte de trás, não conseguia enxergá-los, porém podia ouvi-los se aproximando. Ao chegarem, identificaram-se como sendo dois militares bolivianos, o tenente coronel Laredo e o tenente Sanchez. Após um breve contato e análise da situação, explicou que era mais urgente desenterrar suas pernas e assim o fizeram, com suas próprias mãos e um pequeno pedaço de ferro, pois não havia ferramentas adequadas.
Durante cerca de uma hora, permaneceram lá embaixo, junto com o Ten Cel Alexandre Santos, amparando, trazendo esperança e conforto, apesar dos abalos continuarem durante o resgate. Estes dois militares permaneceram inabaláveis na missão que haviam abraçado, o salvamento daquele brasileiro, a qualquer custo.
O militar brasileiro foi orientando os bolivianos de como ir retirando os escombros que estavam por cima dele. Após muito esforço ele conseguiu girar o corpo e fazer um percurso de cerca de cinco metros para fora dos escombros. Finalmente chegaram até a luz, onde pode finalmente ver os rostos de seus salvadores e pode agradecê-los de forma sumária, pois estava com dores e numa maca, mas sua vontade era de poder expressar todo seu reconhecimento pelo feito heróico que haviam acabado de executar.
“A estes dois bravos heróis bolivianos, eu devo a minha vida e sei que nunca terei como agradecê-los a altura, a não ser em minhas preces diárias. Se houve heróis neste desastre, dois deles com certeza são o Ten Cel Laredo e o Ten Sanches, que colocaram suas vidas em risco para salvar um oficial de outra nação, que Deus os abençoe”. Declarou o oficial brasileiro.
ALEXANDRE JOSÉ SANTOS – Ten Cel



quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Coisas das Escolhas


Nada mais apropriado que o momento político nacional para se falar em escolhas. E para introduzir esta crônica, vou citar a recente frase do economista Danon, em matéria publicada no “Estadão” (1):
“Vale lembrar que a maior virtude da democracia não é a de nos conceder a faculdade de optar pela escolha certa, mas sim a de nos garantir o permanente direito de poder corrigir a escolha errada.” (J.Danon).
Poucas coisas são tão sensatas como reconhecer que não existem escolhas certas, e que, afinal todas envolvem probabilidades. Decerto, quanto mais difíceis as decisões mais na escuridão nossa alma fica. Sem perceber, estamos escolhendo e deixando de escolher a todo momento; e, mesmo sem escolher, somente pelo deixar acontecer, já temos conseqüências da escolha de não escolher. É deste conflito íntimo, por vezes até imperceptível na consciência que o termo “encruzilhada”, típico das religiões afro-brasileiras foi trazido como representação (e reificação) da escolha de um caminho entre pelo menos dois. A verdadeira encruzilhada é na alma. E dela o suor angustiante da dúvida. Como disse um amigo outro dia, “como é difícil atingir a maioria silenciosa!”. Isto porque as nossas decisões cotidianas estão neste silêncio e nesta penumbra, e, de repente, irrompem de tempos em tempos coletivamente em um espanto colocado para todos que “o povo não sabe votar”. Ora, se o povo não sabe votar, comecemos a pensar por pequenas escolhas nossas das rotinas da lide diária. Através delas forma-se natural e sutilmente uma imensa teia holográfica das escolhas (feitas ou não) de nossas vidas e de suas consequências, que nos aproximam ou afastam de outras pessoas. Não tem mágica nisto. Seu reflexo coletivo acaba nos governantes, nas formas de constituição do poder vigente. A permanência da democracia não garante que nosso futuro será melhor, e isto vale em todas as escalas de vida. Mas a permanência da possibilidade de opção nos garante aprender com erros e incentivar os acertos. Não existe decisão que seja absolutamente racional. As mais incertas, contudo, são as absolutamente passionais. Temos exemplos históricos disto, muitos. A Guerra de Tróia foi uma destas ocorrências da humanidade, que, seja mítica ou real, onde a atração e fascínio de uma mulher consciente de sua beleza e sensualidade fez homens derreterem as sinapses de seus córtex cerebrais e elevarem os níveis de testosterona ao Olimpo liberando todo o “id” inconsciente e provocando uma guerra, por causa da mulher. Escolhas. Ou falta delas. Ulisses, o desorientado e problemático rei sem um GPS olímpico da antiguidade grega que aparece no final da Ilíada homérica conseguiu perder-se por 10 anos num marzinho pequenininho de fuleiro, mas que tem a representação simbólica da jornada da alma das diferentes escolhas de nossas vidas, até seu regresso à casa e à família. Um pequeno detalhe de uma escolha diferente, e a teia holográfica giraria para outro destino. Assim foi na Ilíada, e é em nossas vidas. Em uma parábola zen-budista o jovem monge pergunta a seu mestre: “mestre, como posso chegar à sabedoria?”. Ao que este responde: “fazendo boas escolhas!”. “Então, como faço para fazer boas escolhas?” pergunta novamente o jovem discípulo. O mestre o olha e responde: “aprendendo com as más escolhas”.
Por fim, voltando à democracia e aos votos, teremos logo uma grande decisão que, fundamentalmente, será fruto das pequenas, individuais, passionais, imediatistas, racionais, ideológicas, possivelmente burras escolhas. Apenas de pessoas, milhões delas. No Brasil de hoje, honestamente não penso que nenhum dos dois candidatos tirará nosso país da rota de um buraco mais à frente.
Mas, como disse nosso mestre Machado de Assis ao tratar das ilusões do poder e riqueza da vida:
“Ao vencedor, as batatas”.
(1) http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100611/not_imp564898,0.php

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Coisas Imperdoáveis

Que coisas podem ser perdoáveis, e quais coisas são imperdoáveis? Trata-se de uma difícil pergunta, mas da qual vez por outra nos deparamos. Começarei por aqui; pedir desculpas às vezes de nada resolve. Certas coisas são de fato imperdoáveis em minha maneira de ser e ver o mundo e a mim mesmo.Uma notícia divulgada na sexta-feira 1.o de Outubro: o governo dos EUA admitiu oficialmente e pediu desculpas por ter feito experimentos indevidos com seres humanos (1). Este era o “Tukesgee Syphilis Study”. Médicos americanos observaram, porém sem promover tratamento, a centenas de homens afro-americanos com sífilis em estágios tardios de evolução da doença, o que pode ter começado em 1932. Além disto, o governo americano confirmou ter infectado com sífilis em experimentos conduzidos de 1946 a 1948, com deliberada violação da ética médica. Os “cientistas” enviaram prostitutas infectadas por sífilis para uma prisão da Guatemala, uma instituição hospitalar psiquiátrica e acampamentos do exército para “testar possíveis novas curas”. Os homens poderiam ter relações sexuais desprotegidas com estas prostitutas, porém sem terem sido informados ou ter consentimento afirmado."Although these events occurred more than 64 years ago, we are outraged that such reprehensible research could have occurred under the guise of public health … we deeply regret that it happened, and we apologize to all the individuals who were affected by such abhorrent research practices.” Estas foram as palavras da Secretária de Estado Hillary Clinton (2).
Esta questão atingiu-me de uma forma peculiar, por eu ser um médico que se considera também humanista. O mundo esteve sempre cheio de tiranos que vez por outra nascem e crescem espalhando sofrimento e sangue por suas mãos. De matadores de primogênitos no Velho Testamento, passando por Vlad Dracula (o Empalador), aos genocidas dos índios americanos, armênios, aos grandes tiranos do século XX estamos cheios de exemplos de gente que propositada e violentamente ceifou vidas aos montes. Sempre procuramos por similaridades entre estes perfis nas diversas tentativas de entender os tiranos. Mas, curiosamente, na história da humanidade, encerrar uma tirania nunca impediu que novas surgissem. E nunca nenhum tirano morto por vontade popular armada ou não fez com que a tirania em si deixasse de existir; ainda de tempos em tempos subsequentemente outros serem humanos novamente tornam-se vítimas de novos ciclos de tirania. Mas estas aqui que mencionei são formas tirânicas que transformaram-se em governos totalitários. O que a notícia trouxe de diferente, embora nem tanto espantoso, é que foi uma forma de tirania executada por agências de governo, em mais de um deles do mesmo país, e patrocinado por uma agência de saúde; não se menciona nenhum laboratório ou empresa da chamada "Big Pharma". Então neste caso não se tem apenas uma pessoa; tem-se uma sequência de pessoas que diluíram sua responsabilidade ética, em governos que sucederam-se, aparentemente democráticos. Alguém deve lembrar-se do filme “O Jardineiro Fiel” (“The Constant Gardener”, 2005) que tratou desse mesmíssimo tema. Não são mais “teorias de conspiração”, como vez ou outra toma conta da mídia. O que aconteceu foi um caso real, envolvendo pessoas inocentes, à mercê de autoridades, que ainda devem estar algumas vivas.
Mas desculpas não adiantam, assim como de boas intenções o inferno está cheio.
(1) http://www.wellesley.edu/WomenSt/Synopsis%20Reverby%20
(2) http://www.mcclatchydc.com/2010/10/01/101473/us-admits-it-infected-guatemalans.html#ixzz11OYPqSWB

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Coisas do futebol, do inconsciente, e do atrevimento irreverente


Um dia ouvi o narrador e comentarista de futebol José Silvério, da Rádio Bandeirantes de São Paulo afirmar: “Eu não gosto de esporte. Eu gosto é de futebol!”. E sou assim também; já nem torço como antigamente, pois é parte da estratégia do que chamo “profilaxia do infarto”; aprecio com entusiasmo e sem exageros, quando é possível; para mim é quase incontestável que futebol situa-se numa categoria distinta de outros esportes. Nenhum suscita tanta magia e arrebatamento, parece ter uma alma própria, que carece aos outros. E costumo às vezes dizer que futebol se joga com três coisas principais: o cerebelo, hipocampo (sistema límbico), e o inconsciente. Pernas, canelas, joelhos são mera extensões. E, nesta colocação minha um tanto ousada, tocamos na integridade emocional e no delicado equilíbrio para se comandar um corpo, que por vezes parece estar presente somente a nossa frente ou na telinha, porém distante, etéreo, dependente das milhares de sinapses entre este hipocampo e o cerebelo, todas estas o substrato para o inconsciente para dar-nos a vida psíquica. As pessoas gostam de falar sobre o “emocional” do futebol, e é verdadeiro; é a percepção intuitiva da manifestação do inconsciente, que na linguagem popular, é o sinônimo da “caixinha de surpresas”, figura lingüística esta repetida centenas de milhares de vezes, todas as semanas. Mas fala-se de modo como se o emocional (inconsciente) fosse um objeto de controle, não um sujeito, um inconsciente que promove a realização dos desejos. Observem as narrações de rádio ou TV. E, quando ele (este emocional inconsciente) promove esta realização dos desejos, abre-se a caixinha das surpresas, como uma nova caixa de Pandora, podendo levar um atleta aos píncaros das glórias, ou ao vale das lágrimas, os torcedores às lágrimas e risos sublimais, ou à raiva e humilhação. Treinamentos de alto rendimento e performance biomecânica, padrões fisiológicos e comportamentais rigidamente controlados, preparações física, técnica e tática, etc muitas vezes acabam por contar pouco, e pior, deixando o jogador reduzido, à mercê de seu inconsciente ou do inconsciente coletivo. Lembram-se do Antonio Fagundes, o Barbosa, goleiro da seleção brasileira de 1950 e que carregou nos ombros e na alma a melancolia eterna de ter sofrido o gol da derrota? Lembram-se de Roberto Baggio, lembrado eternamente por ter perdido o pênalti que deu o título ao Brasil em 1994? Ambos, derrotados pelos monstros de seu próprio inconsciente, embora, tecnicamente, fisicamente e objetivamente impecáveis craques. Fiz estas duas lembranças porque saiu nesta 4.a feira 22 de Setembro na mídia esportiva a demissão do técnico do Santos por conta de ter punido Neymar, ao não escalá-lo para o jogo contra o Corínthians. O rebuliço todo durante mais de uma semana revelou o que o inconsciente coletivo faz com o futebol, e seus atores. Neymar tem se envolvido em situações ora deslumbrantes, ora decepcionantes. Tipicamente um exemplo que, se seu corpo é uma máquina perfeitamente talhada para executar o melhor futebol possível, seu inconsciente não coopera no mesmo sentido neste momento. Na coletividade do futebol, existem outros jogos em campo nos estádios da alma coletiva; o da grana, e representante do poder é o mais aparente. Temos o jogo da ciência: temos que transformar Neymar (e muitos outros), com todo o aparato científico da medicina esportiva em um vencedor. Juntou-se o jogo da ambição. Nisto, que lugar toma o jovem Neymar neste complexo sistema? Ou onde deixa de colocar-se, uma vez que subitamente perdeu o encanto geral e divide-se exteriormente em uma persona odiada ou amada, sinal de sua cisão interior. Mas este é apenas mais um exemplo de divagação, não se trata de diagnosticar alguém que absolutamente não conheço. Ele mesmo afirmou que não desejou agir assim, e retratou-se publicamente. Mas, em se tratando do inconsciente, nem todo desejo que encontra expressão e realização está na consciência; forma-se aquém desta.
A questão que isso suscita no futebol é que há uma complexa rede de relacionamentos, como na vida, dentro da qual cada sujeito ocupa determinada posição em relação ao outro, todas provisórias, e, no momento posso parafrasear Freud, e dizer que temos um mal-estar, seja na civilização, seja no futebol. Que já vinha desde Dunga, meses atrás, desde as políticas da CBF, e quiçá desde sempre. Nós, reles e vorazes torcedores, famintos pela sublimação do gol mais querido, queremos nada menos que a maestria dos jogadores, mas esbarramos nas relações (seja entre atletas, entre estes e técnicos, e entre dirigentes), e esbarramos no capital e no mercado, que, por fim, dá as cartas finais. E este domínio que acaba por ser o causador de nosso mal-estar; não está mais em campo, virou uma figura fantásmica, de bastidores, do inconsciente. A vivência humana do jogador, do craque, do matador, do driblador, daquele que rasga, chapela, que dá banho, que beija a camisa, que enfim, leva-nos ao delírio coletivo, esta é só mais uma figura, ou no linguajar futebolês, “peça de reposição”. Ponha-se um novo rei! The King is dead! Long live the King!
Pelé, Zico, Falcão, Rivelino, tantos outros parecem ter se despido desta persona. Resta saber se Neymar conseguirá. Enquanto nós permaneceremos os eternos amantes, no devaneio das pulsões em busca do prazer, da poesia utópica, da loucura, do gol como um gozo psíquico coletivo, e, enfim, como cantam os fiéis: “Aqui tem um bando de louco! Louco por ti Corínthians!”.
A razão? Ora, a razão não tem graça nenhuma nisto...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Pensamentos e devaneios sobre suicídio III


Em 2007 levei ao Congresso Brasileiro de Psiquiatria um pequeno trabalho sobre suicídio nas cidades de São Roque e Mairinque (SP). Como são cidades menores que 100mil habitantes, estes dados não são computados pelos censos gerais. Neste levantamento, algumas coisas interessantes, pude perceber, e relacionam-se à notícia publicada de que 9000 pessoas cometeram suicídio em 2008 no Brasil (parte I deste tema). Além dos índices não terem uma abrangência total sobre a população, uma vez que somente centros populacionais maiores são computados, há também um outro ponto relevante: muito provavelmente o número de suicídios é sub-reportado, como se supõe ocorrer em todo o mundo. Quando se refere a este assunto a tendência sempre é o predominar do silêncio. Lembremos que seguradoras e muitos planos de saúde não dão cobertura para as tentativas de suicídio, ou não pagam o sinistro do seguro de vida para a pessoa que suicidou-se. Se você nunca leu suas apólices de seguro de vida ou de plano de saúde veja e comprovará por si mesmo. Uma vez muito tempo atrás tive um paciente que tentou matar-se com a ingestão de medicamentos, e ao dar entrada em um importante hospital privado de São Paulo, a família foi informada que o plano de saúde não cobriria a internação; isto fez com que houvesse um delicado arranjo para que o médico que o atendeu colocasse um diagnóstico de uma intoxicação de modo que ele pudesse ser tratado ali, e eu através de bilhetinhos ou telefonemas ao colega dava a prescrição a ser realizada para evitar suspeitas por parte de auditores. Não penso que seja incomum surgir outros diagnósticos no atestado de óbito em que se escreve que a pessoa morreu, mas não se menciona o suicídio, e isto tem origem diversas, seja pelo temor ao tema, o estigma deixado, despreparo ou receio de equipes médicas em dar este diagnóstico ou mesmo em tratar a pessoa desde sua chegada ao pronto-atendimento hospitalar quando isso ocorre. Mais além, tem determinados casos que envolvem acidentes, ou morte súbita e domiciliar que passam ao largo disto. Simplesmente muitas vezes não dá para saber ou é necessário um detalhamento de detetive.
No trabalho que mencionei, fiz um levantamento do número de suicídios durante o período de 2000 a 2006 naqueles dois municípios, e a população dos dois na época não chegava aos 100mil habitantes somada pelos dados do IBGE, e naquele período houve 46 mortes por suicídio. O fato mais curioso é que do total apenas 3 pessoas faziam tratamento em ambulatórios de saúde mental do SUS, e nenhuma das demais realizou tratamento privado. Muita gente morreu sem estar assistida seja por um psiquiatra, seja por um psicólogo. Outras tantas estiveram sofrendo também e à margem de assistência.
Este levantamento ressaltou a premente necessidade de programas em municípios de pequeno porte para detecção de população de risco de comportamentos que podem levar a auto-agressão. Mas de forma alguma isto pode ser considerado um fator a ser pensado isoladamente, uma vez que circunstâncias como comorbidades psiquiátricas, outros tratamentos e doenças clínicas, insuficiências de saúde pública e de educação, violência urbana e doméstica, abuso e dependência de substâncias (lícitas ou não) caminham a largos passos e de mãos dadas ao evento do suicídio, que aparece, enfim, sendo apenas a boca do funil de um problema não somente psiquiátrico, também de saúde pública e social. Não creio hoje ser possível em um país como o nosso, com problemas estruturais tão complexos em sua sociedade, pensar sobre programas de prevenção de suicídio unicamente. Como em outras tantas coisas.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Pensamentos e devaneios sobre suicídio II


“... passo os dias nesta enfermaria a contar os ladrilhos dos pisos, os vidros das janelas... como a contar que o resto de minha vida em tudo me é inútil, bem como eu mesma. Nada me convence, Dr. Marcelo, que haja uma razão para eu continuar a viver; desespero... desespero... desespero, é o que tenho só dentro de mim. Não tenho vida, ela não me pertence e nunca pertenceu; há só um imenso nada; você não me impedirá de morrer, nem de ninguém; nem a morte eu desejo, pois só tenho a absoluta ausência de vida, o resto será somente a consecução...” (Eliane, carta em 1992).

Eliane jogou-se em frente a um trem do metrô em São Paulo, em um final de semana em que estava visitando sua família; tinha somente 21 anos, e passou muitos meses internada no HC quando eu ainda era médico residente em psiquiatria. Nestes 20 anos na especialidade que completarei este ano tive 6 pacientes meus que cometeram suicídio. Em minha família tive um parente um tanto distante que quando eu era criança também matou-se. Não dá para esquecê-los todos. Guardei durante muito tempo uma sensação incômoda, parecida com uma dor nas costas que não passa nunca completamente sobre “será que fiz alguma coisa errada ou deixei de fazer alguma coisa?”, como uma confirmação de um fracasso que não poderia jamais ter ocorrido, que eu não deveria permitir que ocorresse. Estúpida onipotência médica esta. Mas o suicida deixa um rastro permanente. De fato, precisa-se de coragem para pensar seriamente na própria morte. Humildade também; esta idéia causa por si só angústia. Mas no ato suicida de fato planejado eu penso que há uma grande coragem; pode ser em meio ao desespero, à situação de ver-se sem saídas possíveis que não a morte. Mas não acho que seja algo que possa chamar-se de ato covarde. Dos meus seis pacientes que se suicidaram, quatro o fizeram dentro de um hospital psiquiátrico. Inicialmente cheguei a pensar nas possíveis faltas de segurança, negligência, intolerância à pessoa deprimida; mas isto é muito pouco e na verdade é somente um espelho da própria impotência minha enquanto psiquiatra destas pessoas. Faz parte do que Becker acabou por conceituar como “negação da morte”; como não podemos suborná-la, vivemos tentando deixar no faz de conta que ela não existe de fato assim tão próximo, assim tão assustadoramente presente. Talvez pudesse considerar que estes meus ex-pacientes que se mataram tiveram uma “agressiva misericórdia”. Agressiva sim, e o suicida não agride somente a si mesmo, não somente a si o ato inflingido contra o próprio ser (mente e corpo) atinge, mas pelo lastro deixado a familiares e amados e odiados. Um lastro incognoscível de escuridão e dor, que mesmo as convicções religiosas não conseguem responder na intimidade das lágrimas escondidas por dúvidas inquietantes de quem se foi de forma tão absurdamente incompreendida. E as dúvidas ficam rondando estes que ficaram, num redemoinho, tal qual no estreito de Messina, pego entre Scyla e Caribdes, onde ressentimentos, raivas, saudades, apegos ficam circulando, mas jamais respondidos.
Depois destes 6 pacientes, creio que já passaram de 100 as pessoas que atendi e que tentaram ou seriamente planejaram suas mortes, mas por uma razão ou outra, divina ou não, a vida continuou e isto não ocorreu. É então que pesa em relevância o dado de minha primeira postagem sobre este tema, que apareceu em uma reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”. O suicídio é um processo, e a morte o clímax fatal. Neste processo existe uma comunicação. O suicida costuma deixar sinais de seu desejo e enamoramento com a morte. É este descerramento de mensagens verbais ou não, que geralmente estão criptografadas, que se pode levar ajuda profissional e espiritual a estas pessoas. No que se refere a este tema, o provérbio “cachorro que ladra não morde” não tem validade: por volta de 90% de pessoas que eliminaram suas próprias vidas deixaram algum aviso sobre sua intenção previamente; e as pessoas que tentaram de alguma forma têm mais de 30% de chances de tentarem novamente.
continua...

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Pensamentos e devaneios sobre suicídio I


Saiu segunda-feira (26/07) uma reportagem no “Estadão” a respeito de suicídio. Com dados do próprio ministério da saúde, divulgou que mais de 9 mil pessoas chegaram ao suicídio no Brasil em 2008 (“link” no final da matéria). Deixarei para comentar em outra postagem sobre a questão de saúde pública, números, enfim, sobre a questão psiquiátrica relacionada ao suicídio, e minha experiência profissional também.
Mas antes de tudo, quando penso sobre isto, o suicídio, remeto-me a uma questão que é das fundamentais para a humanidade: a vida merece ser vivida? O que nos faz viver um dia após o outro, e onde encontramos o sentido para isto? Sem ter a pretensão de respondê-la, é aí que lembro-me de Sísifo, condenado a um trabalho inútil e sem sentido. Como todo mito, ele traz consigo as regras morais e sócias de sua época. O curioso de Sísifo, contudo, é que ficou preso a um viver sem vida e sem propósito justamente por tentar burlar a morte, ao invés de precipitar-se a ela como o suicida faz. Foi por recusar o ciclo natural de viver e morrer que, no Tártaro, empurrava diariamente sua pedra de mármore montanha acima e depois a observava cair, e voltava para buscá-la. No mito, não encontramos a angústia de Sísifo sobre esta tarefa. Sabe-se somente de sua condenação. E então podemos colocar o paralelo com o cotidiano da modernidade, refletido de diversas formas em rotinas que se repetem sem fim. Sem propósito, embora com grande esforço e com aparência de nada. E o que a mitologia pode em sua forma alegórica ensinar através disso? Mais do que encontrar uma identificação com um determinado personagem, o mito mostra um papel social. O que podemos carregar do mito ao invés da pedra de Sísifo é que ao percebê-lo existindo dentro de nós, há a abertura de uma pequena porta: a que pode nos livrar da prisão do mito. Como ele esteve preso, muitas pessoas o estão, e sentem-se de fato condenadas a determinados padrões de seu viver, de comportamento, posturas e julgamentos morais que são circulares, sem começo ou fim. Muitas outras pessoas não percebem este sentimento, deixando-se num viver vazio e repetitivo.
Isto o suicida percebe. E é dessa angústia que o desespero de por fim desesperadamente ao intenso sofrimento da prisão do repetir a falta de sentido que a morte aparece de braços abertos. Pena que muitas vezes percebe sem poder comunicar e expressar sem ser julgado ou condenado – mas dessa vez não como Sísifo, e sim como Eco, quem não tinha resposta de seus chamados.
continua...
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,mais-de-9-mil-pessoas-chegaram-ao-suicidio-no-brasil-em-2008-diz-ministerio-da-saude,586205,0.htm

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Quando Eu Atravessar o Deserto

Queria que me esperasses em tua porta, e, ao ver-me, saciasses minha sede, e aliviasses minha cegueira. Porque longos são os tempos de infortúnio, e a angústia da vida humana toma-me por completo, fazendo-me deixar de ver nas coisas, todas as coisas; fazendo-me deixar de sentir, sentindo a alma chorar.
Queria que dissesses: "Sou Lin-Hwan, a mulher do teu mundo, em teu mundo-mulher", e que tomasses minha mão, levando-me, já não mais cego, a conhecer as coisas que sabes, fazendo-me sábio sendo ignorante, tornando-me puro ao conhecer a corrupção.
Quando eu atravessar o deserto, queria ouvir-te entoar teu cântico, na sua nota primordial, e fazer-me ouvir a música existente em meu ser, presente nas esferas. Porque muitas foram as lamentações que ouvi, e muitos os gritos de dor e abominação que proferi, e a fealdade fez-me esquecer que tua música contém a própria criação. Então, sacia minha sede, toma-me pela mão, e canta tua música.
E quando Concórdia for restaurada, mostra-me a luz do ser, da qual se fez todas as outras luzes e cores, pois estou farto de trevas e preenchido com a escuridão do deserto em que habito. Veste-me de estrelas e dança tu comigo a harmonia que envolve todo o caos.
Queria que levantasses teu véu, dissipando as ilusões alimentadas pelos falsos sábios do deserto dos meus caminhos, que acendem velas à luz do sol, e, ignorando-o, dizem que iluminam o mundo com a chama tênue que seguram, e que o pó apaga. Revela-te a mim, para que eu seja minha própria verdade interior.
Espera-me tu em meu leito, para que possas enxugar meu rosto enrugado pelas decepções e sujo de suor e areia que o vento das terras áridas por onde passei castigou-me, e, estando eu limpo, digas: "Sou Lin-Hwan, a filha do rei distante, e espero para que possas tomar--me como tua em teu leito." Então, sacias minha sede, toma-me pela mão, canta tua música, mostra-me a luz, revela teu rosto e deita-te comigo, fazendo-me completo.
Quando atravessar o deserto, estando velho e cansado, enrugado pela desolação e coberto de cicatrizes mal curadas das lutas e provações que ele me submeteu, peço-te levar-me ao lago que há na montanha, para que eu possa refrescar meu corpo doído, envolvendo-me com a água da vida; e, do alto, contemplar (humildemente) os caminhos que percorri, e as belezas que só tu podes mostrar-me.
Assim, quando eu voltar do deserto, ofegante das guerras e exalando morte por meus poros, inspira em mim teu perfume, para que eu respire novamente e teu espírito preencha minha consciência, fazendo do mundo de minha mente uno como foi antes de ser.
Mas, agora que não posso ouvir-te em meu coração, que estou perdido sem saber meu norte, peço-te vir aos meus sonhos e falar-me da magia que há no deserto, em seus perigos ocultos, guiando-me a meu destino. Porque nada vejo além do horizonte, e só tu sabes perscrutar as distâncias do tempo. Então, sacias minha sede, toma-me pela mão, canta tua música, mostra-me a luz, revela teu rosto, deita-te comigo, refresca meu corpo, inspira-me a mente, fala tu nos meus sonhos. És Lin- Hwan, eternamente virgem, eternamente grávida.
E, quando vires exalar meu alento último, cheio do ar de meu deserto, já percorrido, queima-me na pira dos magos para que meu pó possa espalhar-se com o pó. Porque meu espírito estará arrebatado em outras mansões e tu, com tuas asas, o levará seguro. Só então serei um homem, pleno de vida e de amor.
11.03.1990