sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Coisas do Haiti


Algumas experiências marcam nossas vidas definitivamente, como divisores de águas. E o tempo de um elogio não está em um momento somente, mas está sim no eterno presente. Isto porque um reconhecimento verdadeiro, como um elogio é algo que nunca se perde; grava-se como pintura nas paredes do coração para ficar no devir eterno, soprando aos ventos. A admiração é quando luzes diversas se unem para ficarem mais fortes e luminosas. E é disto, do elogio, que ofereço aqui.
Quando houve o terremoto no Haiti eu também estremeci. Eu tinha amigos lá. Demorou-se alguns dias para se ter notícias consistentes de quem havia passado por ele, ou se perdido nele. Na minha própria comoção fiz minha inscrição junto à Associação Médica Brasileira para ser voluntário e prestar ajuda, que não foi necessária. O que pouca gente sabe é que o Coronel Cysneiros, o Tenente Coronel Alexandre Santos, muitos tantos amigos, estudamos juntos, quando eu fiz parte da ativa do Exército Brasileiro. No meu íntimo não existe um ex-militar; existe um militar da reserva. E eu saí no início ainda da Academia Militar das Agulhas Negras somente porque queria ser médico, e não por não gostar da vida militar. A maioria continuou, e o Cysneiros e Alexandre entre eles. Em uma época em que os milicos estão em baixa, em que um soldado das Forças Armadas do Brasil já não chama muita atenção entre nós cidadãos, eles estavam lá no Haiti neste dia; o Coronel Cysneiros (à esquerda) faleceu no terremoto. Estudamos todos juntos. Não me proponho agora a opinar sobre se o Brasil deve ou não ter ações militares no exterior em conjunto com a ONU; tampouco a falar sobre o que pode intimamente fazer uma pessoa comum como nós todos, um soldado, deixar sua família por ter uma missão a cumprir. Meu elogio é na verdade para espalhar o próprio depoimento deste brasileiro salvo, que como muitos por aí não perdem a vida num segundo, mas que como nem tantos (ou raros) estão dispostos a sacrificá-la por acreditar no seu país e em seus valores. E este valor é peculiar a alguém que já passou pelas Forças Armadas. Ela não serve a governos, mas ao país, à Pátria. Sem também querer revolver rumores arrepiantes e arredios do período recente dos governos militares, foram estas Forças Armadas, desprestigiadas, sucateadas, mal remuneradas, sem efetivo, que ao longo de nossa história mantiveram a unidade geográfica de nosso país, ajudaram a manter nossa língua, e que praticamente forçaram a abolição da escravatura e a proclamação da República.
Mas chega. Segue o que o próprio Alexandre escreveu, narrado na 3.a pessoa. A vivência emocional daquelas horas não podem ser computadas nem em anos, e não me cabe falar do que senti ao ler sua mensagem; é ele quem está na foto ao começo desta crônica. A vocês, suas famílias o abraço meu e de todos ao que passaram pelos portões da EsPCEx e da AMAN. E meu singelo orgulho pessoal de, mesmo distante no meio de tantos jovens que sonhavam ser oficiais há tanto tempo, sinto-me ainda próximo o suficiente para chamá-lo de amigo, pelo elo da caserna que um dia uniu nossa turma, e relembrar de modo carinhoso, mas sem denunciar negativamente, que este tenente coronel teve um singelo, espirituoso, feio e engraçado apelido de “Negusa”!
Continue na Luz, e que Deus lhe abençoe sempre! Nosso país precisa de que todos os heróis do dia-a-dia, que ainda não têm consciência de seu percorrer no mundo, acordem para que nossos filhos possam ver o futuro sem mensagens de fim do mundo, mas de prosperidade.
Lourenço

O SALVAMENTO DO TEN CEL ALEXANDRE SANTOS
No dia 12 de janeiro de 2010, durante o terremoto ocorrido no Haiti, o Ten Cel Alexandre Santos encontrava-se no térreo, parte externa do prédio da ONU, juntamente com outros dois oficiais e um sargento.
Quando iniciou o tremor, cada um tomou um destino, em busca de segurança. Ele e um dos oficiais correram em direção à piscina abandonada. Ao saltarem em um desnível de uns 2 metros que havia, o Ten Cel Alexandre percebeu que não daria tempo de chegar até uma área segura e decidiu encostar-se na mureta, seguindo as técnicas de sobrevivência em caso de terremotos. O outro oficial continuou correndo e, infelizmente veio a falecer.
Encostado na mureta, o tenente coronel acompanhou o desabamento do prédio sobre sua cabeça. Adotou uma posição de proteção fetal e ficou aguardando o pior, pois não acreditava poder sair vivo de uma situação daquelas. Após intermináveis segundos de muito barulho, escuridão, poeira, temor, orações e esperança, percebeu que o desabamento havia terminado e que por algum motivo ele ainda estava vivo e consciente.
Vivo entre os escombros, fez um check-up de seu estado físico e percebeu que conseguia respirar, suas funções vitais estavam normais e que, a princípio não tinha perdido nenhum membro. No entanto não conseguia se mover, estava completamente preso. A única solução seria pedir por socorro, e foi o que fez em português, inglês e espanhol.
Após cerca de 30 minutos começou a ouvir vozes do lado de fora, acima de onde ele estava preso. Identificou-se e tentou guiar, a partir daí, o esforço de busca, mas o local em que se encontrava era de difícil acesso, centenas de toneladas de cimento, tijolos e ferro retorcido sobre sua cabeça dificultavam o trabalho das equipes de resgate.
Foram cerca de seis horas soterrado, alternando momentos de fé, esperança, dores por todo corpo, anestesia de uma das pernas, solidão, tristeza pelo futuro incerto, saudades, lamentação pelo que deixou de ser feito e principalmente pelo que deixaria de fazer junto à sua família. Durante todo esse tempo ocorreram diversos outros pequenos abalos que o deixavam muito temeroso.
Percebeu a chegada de uma equipe de resgate, vinda pela parte de trás, não conseguia enxergá-los, porém podia ouvi-los se aproximando. Ao chegarem, identificaram-se como sendo dois militares bolivianos, o tenente coronel Laredo e o tenente Sanchez. Após um breve contato e análise da situação, explicou que era mais urgente desenterrar suas pernas e assim o fizeram, com suas próprias mãos e um pequeno pedaço de ferro, pois não havia ferramentas adequadas.
Durante cerca de uma hora, permaneceram lá embaixo, junto com o Ten Cel Alexandre Santos, amparando, trazendo esperança e conforto, apesar dos abalos continuarem durante o resgate. Estes dois militares permaneceram inabaláveis na missão que haviam abraçado, o salvamento daquele brasileiro, a qualquer custo.
O militar brasileiro foi orientando os bolivianos de como ir retirando os escombros que estavam por cima dele. Após muito esforço ele conseguiu girar o corpo e fazer um percurso de cerca de cinco metros para fora dos escombros. Finalmente chegaram até a luz, onde pode finalmente ver os rostos de seus salvadores e pode agradecê-los de forma sumária, pois estava com dores e numa maca, mas sua vontade era de poder expressar todo seu reconhecimento pelo feito heróico que haviam acabado de executar.
“A estes dois bravos heróis bolivianos, eu devo a minha vida e sei que nunca terei como agradecê-los a altura, a não ser em minhas preces diárias. Se houve heróis neste desastre, dois deles com certeza são o Ten Cel Laredo e o Ten Sanches, que colocaram suas vidas em risco para salvar um oficial de outra nação, que Deus os abençoe”. Declarou o oficial brasileiro.
ALEXANDRE JOSÉ SANTOS – Ten Cel



quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Coisas das Escolhas


Nada mais apropriado que o momento político nacional para se falar em escolhas. E para introduzir esta crônica, vou citar a recente frase do economista Danon, em matéria publicada no “Estadão” (1):
“Vale lembrar que a maior virtude da democracia não é a de nos conceder a faculdade de optar pela escolha certa, mas sim a de nos garantir o permanente direito de poder corrigir a escolha errada.” (J.Danon).
Poucas coisas são tão sensatas como reconhecer que não existem escolhas certas, e que, afinal todas envolvem probabilidades. Decerto, quanto mais difíceis as decisões mais na escuridão nossa alma fica. Sem perceber, estamos escolhendo e deixando de escolher a todo momento; e, mesmo sem escolher, somente pelo deixar acontecer, já temos conseqüências da escolha de não escolher. É deste conflito íntimo, por vezes até imperceptível na consciência que o termo “encruzilhada”, típico das religiões afro-brasileiras foi trazido como representação (e reificação) da escolha de um caminho entre pelo menos dois. A verdadeira encruzilhada é na alma. E dela o suor angustiante da dúvida. Como disse um amigo outro dia, “como é difícil atingir a maioria silenciosa!”. Isto porque as nossas decisões cotidianas estão neste silêncio e nesta penumbra, e, de repente, irrompem de tempos em tempos coletivamente em um espanto colocado para todos que “o povo não sabe votar”. Ora, se o povo não sabe votar, comecemos a pensar por pequenas escolhas nossas das rotinas da lide diária. Através delas forma-se natural e sutilmente uma imensa teia holográfica das escolhas (feitas ou não) de nossas vidas e de suas consequências, que nos aproximam ou afastam de outras pessoas. Não tem mágica nisto. Seu reflexo coletivo acaba nos governantes, nas formas de constituição do poder vigente. A permanência da democracia não garante que nosso futuro será melhor, e isto vale em todas as escalas de vida. Mas a permanência da possibilidade de opção nos garante aprender com erros e incentivar os acertos. Não existe decisão que seja absolutamente racional. As mais incertas, contudo, são as absolutamente passionais. Temos exemplos históricos disto, muitos. A Guerra de Tróia foi uma destas ocorrências da humanidade, que, seja mítica ou real, onde a atração e fascínio de uma mulher consciente de sua beleza e sensualidade fez homens derreterem as sinapses de seus córtex cerebrais e elevarem os níveis de testosterona ao Olimpo liberando todo o “id” inconsciente e provocando uma guerra, por causa da mulher. Escolhas. Ou falta delas. Ulisses, o desorientado e problemático rei sem um GPS olímpico da antiguidade grega que aparece no final da Ilíada homérica conseguiu perder-se por 10 anos num marzinho pequenininho de fuleiro, mas que tem a representação simbólica da jornada da alma das diferentes escolhas de nossas vidas, até seu regresso à casa e à família. Um pequeno detalhe de uma escolha diferente, e a teia holográfica giraria para outro destino. Assim foi na Ilíada, e é em nossas vidas. Em uma parábola zen-budista o jovem monge pergunta a seu mestre: “mestre, como posso chegar à sabedoria?”. Ao que este responde: “fazendo boas escolhas!”. “Então, como faço para fazer boas escolhas?” pergunta novamente o jovem discípulo. O mestre o olha e responde: “aprendendo com as más escolhas”.
Por fim, voltando à democracia e aos votos, teremos logo uma grande decisão que, fundamentalmente, será fruto das pequenas, individuais, passionais, imediatistas, racionais, ideológicas, possivelmente burras escolhas. Apenas de pessoas, milhões delas. No Brasil de hoje, honestamente não penso que nenhum dos dois candidatos tirará nosso país da rota de um buraco mais à frente.
Mas, como disse nosso mestre Machado de Assis ao tratar das ilusões do poder e riqueza da vida:
“Ao vencedor, as batatas”.
(1) http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100611/not_imp564898,0.php

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Coisas Imperdoáveis

Que coisas podem ser perdoáveis, e quais coisas são imperdoáveis? Trata-se de uma difícil pergunta, mas da qual vez por outra nos deparamos. Começarei por aqui; pedir desculpas às vezes de nada resolve. Certas coisas são de fato imperdoáveis em minha maneira de ser e ver o mundo e a mim mesmo.Uma notícia divulgada na sexta-feira 1.o de Outubro: o governo dos EUA admitiu oficialmente e pediu desculpas por ter feito experimentos indevidos com seres humanos (1). Este era o “Tukesgee Syphilis Study”. Médicos americanos observaram, porém sem promover tratamento, a centenas de homens afro-americanos com sífilis em estágios tardios de evolução da doença, o que pode ter começado em 1932. Além disto, o governo americano confirmou ter infectado com sífilis em experimentos conduzidos de 1946 a 1948, com deliberada violação da ética médica. Os “cientistas” enviaram prostitutas infectadas por sífilis para uma prisão da Guatemala, uma instituição hospitalar psiquiátrica e acampamentos do exército para “testar possíveis novas curas”. Os homens poderiam ter relações sexuais desprotegidas com estas prostitutas, porém sem terem sido informados ou ter consentimento afirmado."Although these events occurred more than 64 years ago, we are outraged that such reprehensible research could have occurred under the guise of public health … we deeply regret that it happened, and we apologize to all the individuals who were affected by such abhorrent research practices.” Estas foram as palavras da Secretária de Estado Hillary Clinton (2).
Esta questão atingiu-me de uma forma peculiar, por eu ser um médico que se considera também humanista. O mundo esteve sempre cheio de tiranos que vez por outra nascem e crescem espalhando sofrimento e sangue por suas mãos. De matadores de primogênitos no Velho Testamento, passando por Vlad Dracula (o Empalador), aos genocidas dos índios americanos, armênios, aos grandes tiranos do século XX estamos cheios de exemplos de gente que propositada e violentamente ceifou vidas aos montes. Sempre procuramos por similaridades entre estes perfis nas diversas tentativas de entender os tiranos. Mas, curiosamente, na história da humanidade, encerrar uma tirania nunca impediu que novas surgissem. E nunca nenhum tirano morto por vontade popular armada ou não fez com que a tirania em si deixasse de existir; ainda de tempos em tempos subsequentemente outros serem humanos novamente tornam-se vítimas de novos ciclos de tirania. Mas estas aqui que mencionei são formas tirânicas que transformaram-se em governos totalitários. O que a notícia trouxe de diferente, embora nem tanto espantoso, é que foi uma forma de tirania executada por agências de governo, em mais de um deles do mesmo país, e patrocinado por uma agência de saúde; não se menciona nenhum laboratório ou empresa da chamada "Big Pharma". Então neste caso não se tem apenas uma pessoa; tem-se uma sequência de pessoas que diluíram sua responsabilidade ética, em governos que sucederam-se, aparentemente democráticos. Alguém deve lembrar-se do filme “O Jardineiro Fiel” (“The Constant Gardener”, 2005) que tratou desse mesmíssimo tema. Não são mais “teorias de conspiração”, como vez ou outra toma conta da mídia. O que aconteceu foi um caso real, envolvendo pessoas inocentes, à mercê de autoridades, que ainda devem estar algumas vivas.
Mas desculpas não adiantam, assim como de boas intenções o inferno está cheio.
(1) http://www.wellesley.edu/WomenSt/Synopsis%20Reverby%20
(2) http://www.mcclatchydc.com/2010/10/01/101473/us-admits-it-infected-guatemalans.html#ixzz11OYPqSWB