segunda-feira, 26 de julho de 2010

Quando Eu Atravessar o Deserto

Queria que me esperasses em tua porta, e, ao ver-me, saciasses minha sede, e aliviasses minha cegueira. Porque longos são os tempos de infortúnio, e a angústia da vida humana toma-me por completo, fazendo-me deixar de ver nas coisas, todas as coisas; fazendo-me deixar de sentir, sentindo a alma chorar.
Queria que dissesses: "Sou Lin-Hwan, a mulher do teu mundo, em teu mundo-mulher", e que tomasses minha mão, levando-me, já não mais cego, a conhecer as coisas que sabes, fazendo-me sábio sendo ignorante, tornando-me puro ao conhecer a corrupção.
Quando eu atravessar o deserto, queria ouvir-te entoar teu cântico, na sua nota primordial, e fazer-me ouvir a música existente em meu ser, presente nas esferas. Porque muitas foram as lamentações que ouvi, e muitos os gritos de dor e abominação que proferi, e a fealdade fez-me esquecer que tua música contém a própria criação. Então, sacia minha sede, toma-me pela mão, e canta tua música.
E quando Concórdia for restaurada, mostra-me a luz do ser, da qual se fez todas as outras luzes e cores, pois estou farto de trevas e preenchido com a escuridão do deserto em que habito. Veste-me de estrelas e dança tu comigo a harmonia que envolve todo o caos.
Queria que levantasses teu véu, dissipando as ilusões alimentadas pelos falsos sábios do deserto dos meus caminhos, que acendem velas à luz do sol, e, ignorando-o, dizem que iluminam o mundo com a chama tênue que seguram, e que o pó apaga. Revela-te a mim, para que eu seja minha própria verdade interior.
Espera-me tu em meu leito, para que possas enxugar meu rosto enrugado pelas decepções e sujo de suor e areia que o vento das terras áridas por onde passei castigou-me, e, estando eu limpo, digas: "Sou Lin-Hwan, a filha do rei distante, e espero para que possas tomar--me como tua em teu leito." Então, sacias minha sede, toma-me pela mão, canta tua música, mostra-me a luz, revela teu rosto e deita-te comigo, fazendo-me completo.
Quando atravessar o deserto, estando velho e cansado, enrugado pela desolação e coberto de cicatrizes mal curadas das lutas e provações que ele me submeteu, peço-te levar-me ao lago que há na montanha, para que eu possa refrescar meu corpo doído, envolvendo-me com a água da vida; e, do alto, contemplar (humildemente) os caminhos que percorri, e as belezas que só tu podes mostrar-me.
Assim, quando eu voltar do deserto, ofegante das guerras e exalando morte por meus poros, inspira em mim teu perfume, para que eu respire novamente e teu espírito preencha minha consciência, fazendo do mundo de minha mente uno como foi antes de ser.
Mas, agora que não posso ouvir-te em meu coração, que estou perdido sem saber meu norte, peço-te vir aos meus sonhos e falar-me da magia que há no deserto, em seus perigos ocultos, guiando-me a meu destino. Porque nada vejo além do horizonte, e só tu sabes perscrutar as distâncias do tempo. Então, sacias minha sede, toma-me pela mão, canta tua música, mostra-me a luz, revela teu rosto, deita-te comigo, refresca meu corpo, inspira-me a mente, fala tu nos meus sonhos. És Lin- Hwan, eternamente virgem, eternamente grávida.
E, quando vires exalar meu alento último, cheio do ar de meu deserto, já percorrido, queima-me na pira dos magos para que meu pó possa espalhar-se com o pó. Porque meu espírito estará arrebatado em outras mansões e tu, com tuas asas, o levará seguro. Só então serei um homem, pleno de vida e de amor.
11.03.1990