quarta-feira, 6 de abril de 2011

Coisas dos Canaviais


Verde canavial cresce no sentido vertical Ao desejo puro de aguardente Cobre o solo como vertente que revigora Sinuosas as folhas balançam no sublime aconchego Alcançar a cana e cortá-la Sugar do açúcar o ensejo Ser a ferramenta de conquista E entre as saias de roda e a enxada, Doce é o caminho do amor.


Diana Balis


Nada é fácil no canavial. É comprido e largo; misterioso, não dá para alcançar com a vista suas dimensões. Quente, úmido, por vezes infernal. Assim é a vida. Sempre teremos metáforas pobres para exprimir o viver. Como experiência única e subjetiva, partindo de quem está vivo e pode expressar-se de algum modo em algum momento, todas as menções e alusões a ela somente a empobrecerão. Mesmo assim costumo dizer aos pacientes vez ou outra que viver é como andar num canavial: naquelas ruelas estreitas de pés-de-cana altos, todas quadradinhas mais ou menos simétricas, mas nada matemáticas, as referências podem ser facilmente perdidas, e, ali dentro do canavial, consequentemente facilmente nos perdemos; as duras e longas folhas da cana cortam e machucam muito, como a vida. E tem muita cobra; escondidas ou não sempre são perigosas e é preciso estar atento. Nos momentos de brisa ou vento o farfalhar dos pés das canas chegam a dar impressão de sussurros, vozes mal compreendidas de uma língua desconhecida e misteriosa; a linguagem de nosso inconsciente. Precisamos estar bem protegidos no canavial: roupas de mangas compridas, chapéus, panos para cobrir o pescoço; nossa alma e a vida são como um grande canavial. Grande o suficiente para receber famintos e alimentar o amor; portas e caminhos estreitos aparentemente para solitários. Sombras frescas onde se menos espera. Inspiração, coragem, coração apertado. Tudo há no canavial. Aqui há momentos onde pode-se relaxer, e, com algum esforço, encontrar um lugar seguro onde uma pequena escada pode ser aberta, e então observá-lo do alto. Por incrível que pareça, olhá-lo do alto é conectar-se a ele mais profundamente, contemplativamente, como um monge em meditação. Desta pequena mas abrangente o suficiente para enxergar alguns limites, observar pontos fixos na paisagem, que representam nossa biografia imutável (eventos passados, pais, família), valores de infância e família, crenças, onde há morros, onde há vales. Onde tem ninho de cobra... Deste alto a medida é maior e podemos ver onde nossos caminhos formam círculos viciosos ou virtuosos, onde há luz e sombra em nossa alma. Assim é o canavial da alma do alto. E este é o trabalho da psicoterapia: abrir a escadinha e ajudar alguém a subí-la. Mas isto não é um patrimônio da psicoterapia. Não. O autoconhecimento é um patrimônio de todos, de toda a humanidade. Todas as escadas são válidas, e cada um tem a sua de preferência Todo método para auto-conhecimento, seja terapia, meditação, religiosidade, filosofia, etc são escadas que podem ser abertas. E assim é a jornada, fechar a escada e descer para a lide diária. Se implica em um estreitamento da visão, ao mesmo tempo também se adquire uma cartografia mental de nossas dimensões e limites, que gradualmente se amplia em possibilidades e direções, o que estamos ganhando e procurando diariamente, por onde não se deve ou deve-se ir. Podemos olhar do céu, mas nossos humanos pés precisam tocar o chão. Assim deixo hoje este pequeno recado; que ele ajude cada leitor a estender sua própria escada, torná-la estável, e também leve. Descobrir que o estar perdido é o primeiro passo para encontrar as saídas. Andar no canavial necessita de complacência, persistência e determinação. E quando os caminhos estão cerrados, abri-los. Na faca mesmo. Viver não é preciso, como Pessoa já o disse.