quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Coisas do "Au Revoir Mairinque"


INTRODUÇÃO
Eu deixei meu trabalho no município de Mairinque, SP, em Março de 2009; nunca me arrependi. Tampouco arrependi-me de ter exercido (e dela sair) a chefia de saúde mental em São Roque, município vizinho, onde participei da criação e chefiei o CAPs local. O artigo abaixo foi publicado no jornal “Folha de Mairynk” em 18 de Julho de 2009; foi por puro esquecimento que somente lembrei-me dele agora. Ou talvez por ato falho. Por várias vezes pude afirmar amiúde com alguns amigos: “sabe quando Mairinque terá novamente dois psiquiatras pesquisadores do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP em seu quadro de funcionários? com o mesmo salário de outro médico sem tanta especialização? Nunca...”. O segundo era meu colega e amigo Dr. Jorge Henna. E isto foi dito com muita naturalidade, sem também tom profético; tomara até que eu erre. De qualquer modo acho que o artigo merece estar aqui no meu blog. Eu não desisti de trabalhar lá; apenas fui convencido por uma chefia de saúde burra e incompetente, por uma administração municipal semelhante, de que não valeria mais a pena desperdiçar suor por tão pouco, inclusive o salário.
Mas segue o artigo, que apesar de mais de dois anos, continua atual, e muito.

“Au Revoir”, Mairinque!
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.”
Eclesiastes, 3:1-2

Foi em 1998 que comecei a trabalhar em Mairinque; e concursado desde 2000. Ali, no posto de saúde da Vila Sorocabana.
Preciso avisar, contudo: estou saindo. Muitas coisas mudaram nesses anos, e foram extremamente produtivos. Já não sou visto apenas como “médico de loucos” como costumava ser o jargão popular aqui, compartilhado até por gente culta. Isto é muito bom. Mas o serviço aumentou sua demanda a ponto de se tornar ineficiente. Apesar das aparências, esta ineficiência não foi totalmente um reflexo de políticas locais. Não. Faz parte do que ocorre com a Psiquiatria no Brasil todo. Podia ainda ter sido melhor aqui em Mairinque, entretanto.
Temos no município um serviço que não é autônomo, e não é planejado a longo-prazo, sem articulação desejável com outros serviços médicos dentro do próprio município ou fora dele, e sem consistência interna em suas atividades. Quando escrevo aqui sobre consistência interna especificamente faço referência ao fato do ambulatório de psiquiatria ter sido conduzido apenas por mim enquanto médico especialista nos últimos anos. Nem cabe aqui mencionar colegas que chegaram, olharam, e não ficaram, com a lacônica frase “não vale a pena!”.
Nestes anos sempre fui muito “reclamão” (provavelmente meus pacientes nem saibam disso) com minhas chefias, acreditando eu que persistir na exigência de melhores condições de trabalho e tratamento fosse apenas parte do necessário e minimamente aceitável. Talvez por isso fosse considerado chato demais, ou sério demais.
Mas não acho aceitável permanecer só neste serviço. Não acho aceitável submeter meus pacientes a retornos extremamente prolongados, consultas sem tempo adequado para a entrevista, simplesmente porque não há outro médico psiquiatra para trabalhar aqui. Não acho aceitável ter que ficar modificando tratamentos simplesmente porque os medicamentos estão em falta constante. Não acho aceitável não poder contar com uma equipe mínima de profissionais a dar apoio ao tratamento psiquiátrico em suas várias formas.
Sou um bom médico, e um bom especialista. Nisto não há nenhuma, absolutamente nenhuma soberba em reconhecê-lo em mim mesmo. Por isso também, não acho aceitável não poder exercer uma boa medicina aqui. Estou sendo ético com os princípios de minha profissão, com meu juramento.
Todas as dificuldades somaram-se nesses anos ao fato de que a psiquiatria lida com doenças crônicas e persistentes, muitas incuráveis e incapacitantes, como esquizofrenia e transtorno bipolar, nossa eficiência é de fato baixa. Mas não mais baixa que outras especialidades médicas. Mas a psiquiatria não é uma especialidade como as outras, envolve particularidades da vida íntima de cada um, o sofrimento invisível e não detectável na maioria de exames. A doença mental não é uma coisa isolada. Está em todos nós. Ela quase é contagiosa, pois acaba por afetar toda a família também. Ninguém sofre de uma doença mental sozinho.
Assim, apesar de eu ter permanecido nessa longa jornada ao serviço dos pacientes de Mairinque, cansei. Cansei de ser “reclamão” e de ouvir “não” para solicitações que são corretas e necessárias, ou de ouvir desculpas infantis de que “as dificuldades são muitas, mas serão resolvidas”. Claro que eu sei que as dificuldades são muitas. Afinal de contas eu estava no “front” da batalha. Cansei de ser chato e cansei de esperar por atitudes sérias e que estão acima da minha esfera de atuação. Cansei também esperar mudanças da vontade política na saúde a cada gestão que se passa, com as coisas sempre sendo feitas da mesma maneira e as cores desbotando pela falta de cuidado.
Cansei de ver gente aparentemente qualificada na administração pública municipal considerar doenças mentais como “frescuras” ou “fraqueza de caráter”, ou “falta do que fazer”, vindo por vezes mesmo de chefes de departamentos ou até de colegas médicos, mas estes, felizmente estes casos isolados.
Por estas razões estou saindo, e com a amarga melancolia de não ter realizado o que desejava a longo prazo. E não por falta de capacidade ou persistência; foram 10 anos, afinal.
“Au revoir”, Mairinque!
Jamais me esquecerei das pessoas que deram apoio trabalhando ao meu lado; todas elas. Principalmente, guardarei eternamente a lembrança de meus pacientes a quem procurei atender da melhor maneira possível, e seus familiares. E levarei meu agradecimento por todas estas pessoas que procuraram minha ajuda médica por todos os meus dias. Guardarei a honra de ter podido ser testemunha e confidente de tantas e tantas histórias de emoções, de vida. Elas me ensinaram mais, muito mais sobre o ser humano do que pode ser aprendido em livros ou nas faculdades, ou nas igrejas. Obrigado aos meus pacientes que também ensinaram-me não somente sobre o merecimento da vida ser vivida, mas sobre a superação dos obstáculos.
Ensinaram-me a ser humilde e perceber minhas limitações humanas e nossa pequenez diante do universo.
Agora é hora de levantar e partir, deixar a cidade, sem mais desejo de um pouco de conforto profissional. Partir em busca de outros desafios, em algum lugar qualquer.
“Au revoir”, Mairinque!
Marcelo Lourenço de Toledo
Médico Psiquiatra
Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, analista junguiano
Médico pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP