quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Coisas do "Au Revoir Mairinque"


INTRODUÇÃO
Eu deixei meu trabalho no município de Mairinque, SP, em Março de 2009; nunca me arrependi. Tampouco arrependi-me de ter exercido (e dela sair) a chefia de saúde mental em São Roque, município vizinho, onde participei da criação e chefiei o CAPs local. O artigo abaixo foi publicado no jornal “Folha de Mairynk” em 18 de Julho de 2009; foi por puro esquecimento que somente lembrei-me dele agora. Ou talvez por ato falho. Por várias vezes pude afirmar amiúde com alguns amigos: “sabe quando Mairinque terá novamente dois psiquiatras pesquisadores do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP em seu quadro de funcionários? com o mesmo salário de outro médico sem tanta especialização? Nunca...”. O segundo era meu colega e amigo Dr. Jorge Henna. E isto foi dito com muita naturalidade, sem também tom profético; tomara até que eu erre. De qualquer modo acho que o artigo merece estar aqui no meu blog. Eu não desisti de trabalhar lá; apenas fui convencido por uma chefia de saúde burra e incompetente, por uma administração municipal semelhante, de que não valeria mais a pena desperdiçar suor por tão pouco, inclusive o salário.
Mas segue o artigo, que apesar de mais de dois anos, continua atual, e muito.

“Au Revoir”, Mairinque!
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.”
Eclesiastes, 3:1-2

Foi em 1998 que comecei a trabalhar em Mairinque; e concursado desde 2000. Ali, no posto de saúde da Vila Sorocabana.
Preciso avisar, contudo: estou saindo. Muitas coisas mudaram nesses anos, e foram extremamente produtivos. Já não sou visto apenas como “médico de loucos” como costumava ser o jargão popular aqui, compartilhado até por gente culta. Isto é muito bom. Mas o serviço aumentou sua demanda a ponto de se tornar ineficiente. Apesar das aparências, esta ineficiência não foi totalmente um reflexo de políticas locais. Não. Faz parte do que ocorre com a Psiquiatria no Brasil todo. Podia ainda ter sido melhor aqui em Mairinque, entretanto.
Temos no município um serviço que não é autônomo, e não é planejado a longo-prazo, sem articulação desejável com outros serviços médicos dentro do próprio município ou fora dele, e sem consistência interna em suas atividades. Quando escrevo aqui sobre consistência interna especificamente faço referência ao fato do ambulatório de psiquiatria ter sido conduzido apenas por mim enquanto médico especialista nos últimos anos. Nem cabe aqui mencionar colegas que chegaram, olharam, e não ficaram, com a lacônica frase “não vale a pena!”.
Nestes anos sempre fui muito “reclamão” (provavelmente meus pacientes nem saibam disso) com minhas chefias, acreditando eu que persistir na exigência de melhores condições de trabalho e tratamento fosse apenas parte do necessário e minimamente aceitável. Talvez por isso fosse considerado chato demais, ou sério demais.
Mas não acho aceitável permanecer só neste serviço. Não acho aceitável submeter meus pacientes a retornos extremamente prolongados, consultas sem tempo adequado para a entrevista, simplesmente porque não há outro médico psiquiatra para trabalhar aqui. Não acho aceitável ter que ficar modificando tratamentos simplesmente porque os medicamentos estão em falta constante. Não acho aceitável não poder contar com uma equipe mínima de profissionais a dar apoio ao tratamento psiquiátrico em suas várias formas.
Sou um bom médico, e um bom especialista. Nisto não há nenhuma, absolutamente nenhuma soberba em reconhecê-lo em mim mesmo. Por isso também, não acho aceitável não poder exercer uma boa medicina aqui. Estou sendo ético com os princípios de minha profissão, com meu juramento.
Todas as dificuldades somaram-se nesses anos ao fato de que a psiquiatria lida com doenças crônicas e persistentes, muitas incuráveis e incapacitantes, como esquizofrenia e transtorno bipolar, nossa eficiência é de fato baixa. Mas não mais baixa que outras especialidades médicas. Mas a psiquiatria não é uma especialidade como as outras, envolve particularidades da vida íntima de cada um, o sofrimento invisível e não detectável na maioria de exames. A doença mental não é uma coisa isolada. Está em todos nós. Ela quase é contagiosa, pois acaba por afetar toda a família também. Ninguém sofre de uma doença mental sozinho.
Assim, apesar de eu ter permanecido nessa longa jornada ao serviço dos pacientes de Mairinque, cansei. Cansei de ser “reclamão” e de ouvir “não” para solicitações que são corretas e necessárias, ou de ouvir desculpas infantis de que “as dificuldades são muitas, mas serão resolvidas”. Claro que eu sei que as dificuldades são muitas. Afinal de contas eu estava no “front” da batalha. Cansei de ser chato e cansei de esperar por atitudes sérias e que estão acima da minha esfera de atuação. Cansei também esperar mudanças da vontade política na saúde a cada gestão que se passa, com as coisas sempre sendo feitas da mesma maneira e as cores desbotando pela falta de cuidado.
Cansei de ver gente aparentemente qualificada na administração pública municipal considerar doenças mentais como “frescuras” ou “fraqueza de caráter”, ou “falta do que fazer”, vindo por vezes mesmo de chefes de departamentos ou até de colegas médicos, mas estes, felizmente estes casos isolados.
Por estas razões estou saindo, e com a amarga melancolia de não ter realizado o que desejava a longo prazo. E não por falta de capacidade ou persistência; foram 10 anos, afinal.
“Au revoir”, Mairinque!
Jamais me esquecerei das pessoas que deram apoio trabalhando ao meu lado; todas elas. Principalmente, guardarei eternamente a lembrança de meus pacientes a quem procurei atender da melhor maneira possível, e seus familiares. E levarei meu agradecimento por todas estas pessoas que procuraram minha ajuda médica por todos os meus dias. Guardarei a honra de ter podido ser testemunha e confidente de tantas e tantas histórias de emoções, de vida. Elas me ensinaram mais, muito mais sobre o ser humano do que pode ser aprendido em livros ou nas faculdades, ou nas igrejas. Obrigado aos meus pacientes que também ensinaram-me não somente sobre o merecimento da vida ser vivida, mas sobre a superação dos obstáculos.
Ensinaram-me a ser humilde e perceber minhas limitações humanas e nossa pequenez diante do universo.
Agora é hora de levantar e partir, deixar a cidade, sem mais desejo de um pouco de conforto profissional. Partir em busca de outros desafios, em algum lugar qualquer.
“Au revoir”, Mairinque!
Marcelo Lourenço de Toledo
Médico Psiquiatra
Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, analista junguiano
Médico pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Cosas de las Crónicas de Buenos Aires III



Continuación en los días siguientes.
Bueno, vamos às notícias do congresso; domingo cheguei cedo ao local da convenção, o Hotel Sheraton; ao redor de 8h30min da manhã. Assustei-me e fui pego de surpresa: achei que facilmente faria meu registro final (já tinha feito o preliminar pela internet); a fila para credenciamento, porém, estava na porta de fora do enorme hotel, e ainda dava voltas e voltas por dentro das instalações (!) como os bonecos de dragões chineses em festas. Muita irritação e bufadas de raiva dos presentes contra os organizadores; o fracasso de logística foi total, total, total. São quase 13 mil participantes (a maior parte psiquiatras), de todos os locais desta pequena bola azul do universo; vi muitas mulheres islâmicas de burca; orientais de todos os tipos de olhos puxados diferentes (sempre rindo e falando como se estivessem brigando...); escandinavos com quase dois metros de altura ao lado de baixinhos da América Central com cara de índio... saí pouco depois das 12 horas; quase 2 horas e meia em uma fila, coisa que nunca ocorreu em um congresso desde que me conheço como congressista (e vou fazer 21 anos de graduação...); troquei muitas idéias com um cara da África do Sul que estava na minha frente da fila, mas o papo sobre psiquiatria não pôde continuar, pois à frente dele havia um argentino, e logo um amigo dele, e logo mais outro, todos rindo e trocando beijos e abraços, sem respeitar filas, e, sem perceber, quase 10 ali... (e como fazemos isto, não?) e mais outro depois; uma autêntica reprodução, como se fossem bactérias vistas ao microscópio, não somente ali, mas se repetindo em outras partes da enorme fila com toda certeza; o tal colega sul-africano começou a ficar revoltadíssimo, e quando vi que o cara queria sair na porrada mesmo com los Hermanos argentinos furando fila, perguntei calma e ingenuamente a ele se queria que o levasse para o atendimento médico do hotel, “apenas para verificar sua pressão arterial...” (falávamos em inglês), mas negou e não quis ir; pelo menos o levei para um café, com a permissão de “Bob” (apelido mental apenas meu) do fulano atrás de nós, outro africano, negrão mesmo, angolano, cabeludo, cheio de colares e mais tranquilo que Bob Marley depois de tragar um baseado; com seu mp3, roupas coloridas e tênis furado; conversamos em um português estranho nestas horas de fila e, pasmem, a dita figura é professor de uma universidade lá em Angola; junto a ele um indiano elegante e perfumado demais com um turbante e uma jóia no topete dele; devia ser um brâmane, pois a maioria dos médicos indianos são brâmanes, mas não ousei perguntar. Depois desta “via crucis”, resolvi voltar ao hotel. O material distribuído pelos US$ 300 de inscrição para os participantes é de um mau gosto atroz e a qualidade lamentável. A tradicional mala que era “até que bonitinha” com bastante material e livros gratuitos (mas nem tanto, foram pagos na inscrição...) foi substituída por algo que parece estas sacolas ecológicas de supermercados grandes do Brasil; enfim, não consegui entrar por mais filas e ver o que ocorreria na semana; cansado, voltei caminhando na direção a Puerto Madero e fui longe até a entrada de “ La Boca”. A confusão no local da convenção lembrou-me o igualmente confuso espaço do congresso brasileiro de psiquiatria que foi em Belo Horizonte, anos atrás. Apesar desses contratempos, assisti boas apresentações nestes dois dias; muitas vezes em pé; das quais valem a pena (embora seja condição não necessária o sofrimento passado). Encontrei Professor Berrios, do Reino Unido, um dos maiores psiquiatras do mundo hoje ainda vivo, e surpreendeu-me que conseguiu distinguir-me na multidão de seu auditório de conferência e foi me dar um aperto de mão (e eu estava somente como um assistente...); fiquei constrangido até, dada a importância mundial dele (mesmo desconhecido para os que estão lendo...). O mesmo posso dizer de ter encontrado novamente com Norman Sartorius, que conheci e junto com pessoas da OMS almoçamos quase durante a tarde inteira também em um inverno na Suíça; e este é “o cara” responsável pela implantação da CID-10 no capítulo das doenças mentais no mundo todo; isto foi em Cranz-Montana no ano de 1996; aconteceu que apresentamos um trabalho no mesmo simpósio (por coincidência) e este o simpático velhinho croata também conseguiu lembrar-se de minha apresentação sobre esquizofrenia em minha pesquisa na época! Que coisa! Mesmo eu estando afastado dos círculos acadêmicos mais importantes... no final do dia da segunda-feira, quase 18h30min, ainda havia grande fila; nem tão grande como no domingo e a manhã, mas não era desprezível.
Enfim, como disse meu amigo Walmor, todo este congresso começou como “um legítimo tango, trágico, mas com momentos de enlevo”.
Desta maneira, creio que um novo congresso da WPA (Associação Mundial de Psiquiatria), vinculada à OMS, na America do Sul será difícil fora do Brasil; do que lembro do anterior e primeiro congresso aqui nas bandas do hemisfério sul, o congresso do Rio em 1993 não houve este problema com organização.

Cosas de las Crónicas de Buenos Aires II

Dias seguintes (19 e 20/09)
E Ramón Carlos, o motorista que levou-me do aeroporto ao hotel estava certo... a capital porteña está cheia de bolivianos, venezuelanos, paraguaios e peruanos; quase nenhum deles com trabalho formal, ou quando os têm são varredores de ruas, limpadores de vitrines das lojas famosas, entregadores de comida em geral e pedintes; a maior parte se vê que não trabalha; as ruas de compras mais famosas, como a Calle Florida, Avenida Corrientes, Córdoba, Calle Lavalle e Suipacha estão abarrotadas de camelôs estendendo seus lençóis pretos nos passeios e colocando bugigangas a vender; ou vendendo café e churros; uma versão argentina de nossa 25 de Março de São Paulo. Na verdade, nem se pode dizer se é piorada ou melhorada. Os imigrantes, como em toda a história, buscam garimpar seu espaço para maior paz e prosperidade. Entre estes que se vê claramente não serem argentinos, crianças descalças e mal cuidadas; tocadores de flautas indígenas peruanas competem por cantadores e dançarinos de tango de rua; uma barulheira; dos argentinos nas ruas, contudo, vê-se também que têm ocupações mais diferenciadas (um pouco) e oficiais: donos de bancas de jornais e tabacarias, floristas são os mais comuns que se encontram nas ruas. Como escrevi ontem, estou hospedado a um quarteirão da Plaza de Mayo, da Casa Rosada e da Catedral de Buenos Aires; estes estrangeiros vendem até comida para pombos. Domingo, após as atividades preliminares do congresso fui à feira de San Telmo (umas 18 horas); fiquei me perguntando como pode caber tanta porcaria numa feira: óculos quebrados, máquinas fotográficas completamente estragadas, talheres velhos (e nem são de prata...) caixas de fósforos de hotéis e restaurantes que talvez nem existam mais, navalhas velhas, escovas de dente usadas, sapatos usados sem o correspondente par, e, pasme, partes de dentaduras e dentes de implante (“de gente que já morreu”, eu pensei); nada achei mesmo de fosse interessante para um presentinho; na rádio de notícias (Continental) em meu mp3, protestos dos comentaristas econômicos com a alta do dólar no Brasil, que repercute no Peso argentino, e fará da chegada primavera e verão mais cara aos argentinos para ir a Santa Catarina... além disso, muitos comentaristas econômicos da mídia em geral criticam o fato de que a Argentina está por demais dependente do Brasil, em uma relação comercial deficitária para a Argentina (obviamente, súper-avitária para o Brasil); ouvi apenas de dois economistas daqui dizerem: “Se a Argentina não comprar do Brasil, vai comprar de quem? Chineses? Europeus? Nós argentinos é que não temos nada e precisamos importar; do Brasil ainda é mais barato...”. Isto me pareceu de bom senso, mas como eu absolutamente nada entendo de comércio exterior, nada a opinar.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Cosas de las Crónicas de Buenos Aires



Entre 18 a 22 de Setembro deste ano ocorreu na Argentina o Congresso Mundial de Psiquiatria; resolvi colocar no blog algumas das coisas que vivenciei; não propriamente do conteúdo do congresso, que deixarei para depois, mas do estar lá, na capital portenha.

O primeiro dia, sábado (17/09)
Chegamos rápido e tranquilo a Cumbica; como podia se esperar pela hora; Getúlio (meu sogro) comentou que se o Gui estivesse ali eles poderiam assistir, depois de deixar-me no aeroporto, ao treino do Corínthians para o jogo de amanhã (domingo); ali pertinho mesmo. Eu realmente estava mais preocupado com o embarque, pois não consegui fazer meu “check-in” pela internet e foi somente menos de 12 horas antes de meu vôo que pude ver que de fato ele existia, mas não estava confirmado; pelo menos não sou ansioso e pude dormir bem. Na época de meu pai viajando todo mês para a Argentina e USA não sei como ele pensava (EU era criança, e ele, acho que era mais novo que eu hoje) ... mas, com certeza preocupações não faltavam. Ainda me lembro da primeira vez que cheguei a Buenos Aires, em 1976; depois vou relembrar, escrever e em colocar em palavras isto.
Ao fazer o “check-in”, logo cedo ainda tive um problema; por sorte era cedo e sem correr risco de perder o vôo... meu sobrenome estava trocado por TOLADO; um pequeno erro de digitação de alguém que nem se saberá jamais o autor (nem ele mesmo), mas que causou uns 45 minutos ou mais de espera no balcão de Aerolineas, passando a dúvida de mão em mão até chegar à Polícia Federal (fazer aquela checagem “cara-crachá-cara-crachá-cara-crachá” no passaporte, mensagens trocadas em rádio com superiores, e decidir finalmente que eu era eu mesmo e que aquilo foi apenas um erro). Minha palavra de fato, ao vivo, dizendo que eu sou quem eu sou de nada valeu. Como mais tarde me disse um amigo, fiquei mesmo é aTOLADO no aeroporto; mas resolvida a querela, fui a passear, fazer xixi, comprar um caça-palavras e chicletes, e tomei um café; absurdo de caro e absurdo de fraco com pão-de-queijo murcho; nada de estimulante. Pero, sin embargo, finalmente o embarque. O “duty free-shop” de São Paulo ainda continua meia-boca; poucas coisas a comprar, com o hipnotismo implícito do “comprem agora! Pois pagamos muitos impostos, e se arrependerão depois!”; por detrás de pseudo-promoções, nem tão atraentes e eram quase todas voltadas para as mulheres (só podia ser...) e apreciadores de tecnologias portáteis. Mas, o pior, tudo o que eu achei interessante para a Roberta custava mais de US$ 1.000. Será que sucumbi aos poderes do mercado neo-capitalista? Creio que nem tanto; apenas sinal de que ainda continuamos subdesenvolvidos, apesar dos apelos dos governantes PTistas; não pelo preço em si, mas pela afetação implícita e subliminar de que somos todos pobres, mesmo os que viajam ao exterior, pensando em fazer vantagens, apesar de toda a propaganda, nos reais termos da “propaganda” que as alemães fizeram na 2.a GM. Acho que isto se repete desde muitas décadas...
Después, um vôo tranquilo, ainda que em um avião que eu vi que era velho (porém, o verbo deveria ser no presente mesmo pois continuará a voar...). Mas Boeing é Boeing, tanto como Jeep. Sem sacudelas ou turbulências; apenas um sujeito umas três ou mais vezes mais obeso que eu a roncar muito alto a meu lado e ocupando duas poltronas, e, perdão, flatular é pouco; o cara cheirava merda mesmo, e eu nem sabia neste momento que esta era apenas a primeira, e menos intensa que me aconteceria ainda...
Quando cheguei, ao levantar de minha poltrona onde mal podia me mover vi que o mais gordo que eu conseguiu quebrar meus óculos de leitura... joguei a tralha fora e precisei gastar uns trocados em um novo anteojos no “duty free-shop” de Buenos Aires para poder ler e até escrever agora... na saída encontrei de pronto o motorista dizendo que ia fazer meu translado, tudo de conforme combinado. Ramón Carlos és su nombre, e pilotando um Citroën C4 nuevo (2011) disse-me que é peronista, falou muito a respeito das próximas eleições na Argentina; ficou também dizendo que a Argentina está contaminada de paraguaios, peruanos e bolivianos e introduzir uma “ola de horror”, mendicância, prostituição, tráfico, trabalho escravo e etc... coisas que todos sabem que existe no mundo todo, mas do modo como falava talvez somente existisse ali mesmo. Coisas que precisarão de atitudes de governantes de fato com comprometimento não com partidos ou alianças, mas com interesses supra-nacionais. Isto será raro. Se sequer existirá.
O caro motorista ainda ficou puto da vida pois eu disse que queria assistir a uno partido de fútbol de Boca Juniors... e ele começou a xingar pois ele torcia para o River Plate, rebaixado à segunda divisão (série B para nós) do futebol argentino.
Cheguei no hotel: então disseram que fizeram “un cambio”, pois aquele meu hotel reservado estava lotado, e (olha que coisa de código de consumidor!), fui trocado de um hotel de três estrelas de U$ 80 a diária para um hotel de cinco estrelas com diárias de US$ 190, a mais barata. Não fui ainda checar quanto custa meu apartamento, mas apenas saber que saí ganhando me deixou alegre, com uma jacuzzi en acomodación! Pero, mierda, vou ficar a assistir simpósios... não dá tempo para estas coisas...
Bom apartamento, cama grande, sem ficar com frio nos pés; tomei banho e saí para uma caminhada; estou hospedado a dois quarteirões da Casa Rosada (que nem está tão rosada assim), uns cinco de Puerto Madero. Mais 45 ou 50 minutos de caminhada para o centro de convenções; fui até a orla de Puerto Madero; então veio la segunda mierda...
Uma PALOMA, pequeña y desgraciata palomita, cagou na minha cabeça; pequena paloma, pero enorme cagada... pareceu um ovo frito em tamanho; sujou-me todo; e aquilo tem um odor fétido, feio, horrível. Deu nojo, náuseas.... sério!
Eu estava meio longe já... tive que voltar ao hotel, com todas las personas a mi redor mirando-me com ares de asco, fedendo cocô de pomba... cagou na cabeça, nos meus óculos, na minha camisa e casaco, em minha mochila... voltei. Banho e roupa nova. Fui ao Carrefour na Avenida 9 de Julio (6 quarteirões) para comprar produtos de limpeza para a mochila... ela é fundamental, Swiss Gear, merece... e um desodorante também.
No caminho de volta, quase 8 da noite, fiquei pensando sobre os meteoros caindo sobre nosso pequeno planeta... la mesma cosa que a cagada da pomba; sobrevivi ao impacto. Sentei um pouco nos degraus da catedral de Buenos Aires. Como tinha muitos mendigos e não tinha eu percebido antes, logo acabei saindo. Amanhã, domingo, vou no caminho procurar alguns sebos de livros antigos, ver o Plata, e começar o congresso de manhã ainda.
Buenas noches! Isto foi ontem.
Saludos,
Lourenço

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Coisas dos Canaviais


Verde canavial cresce no sentido vertical Ao desejo puro de aguardente Cobre o solo como vertente que revigora Sinuosas as folhas balançam no sublime aconchego Alcançar a cana e cortá-la Sugar do açúcar o ensejo Ser a ferramenta de conquista E entre as saias de roda e a enxada, Doce é o caminho do amor.


Diana Balis


Nada é fácil no canavial. É comprido e largo; misterioso, não dá para alcançar com a vista suas dimensões. Quente, úmido, por vezes infernal. Assim é a vida. Sempre teremos metáforas pobres para exprimir o viver. Como experiência única e subjetiva, partindo de quem está vivo e pode expressar-se de algum modo em algum momento, todas as menções e alusões a ela somente a empobrecerão. Mesmo assim costumo dizer aos pacientes vez ou outra que viver é como andar num canavial: naquelas ruelas estreitas de pés-de-cana altos, todas quadradinhas mais ou menos simétricas, mas nada matemáticas, as referências podem ser facilmente perdidas, e, ali dentro do canavial, consequentemente facilmente nos perdemos; as duras e longas folhas da cana cortam e machucam muito, como a vida. E tem muita cobra; escondidas ou não sempre são perigosas e é preciso estar atento. Nos momentos de brisa ou vento o farfalhar dos pés das canas chegam a dar impressão de sussurros, vozes mal compreendidas de uma língua desconhecida e misteriosa; a linguagem de nosso inconsciente. Precisamos estar bem protegidos no canavial: roupas de mangas compridas, chapéus, panos para cobrir o pescoço; nossa alma e a vida são como um grande canavial. Grande o suficiente para receber famintos e alimentar o amor; portas e caminhos estreitos aparentemente para solitários. Sombras frescas onde se menos espera. Inspiração, coragem, coração apertado. Tudo há no canavial. Aqui há momentos onde pode-se relaxer, e, com algum esforço, encontrar um lugar seguro onde uma pequena escada pode ser aberta, e então observá-lo do alto. Por incrível que pareça, olhá-lo do alto é conectar-se a ele mais profundamente, contemplativamente, como um monge em meditação. Desta pequena mas abrangente o suficiente para enxergar alguns limites, observar pontos fixos na paisagem, que representam nossa biografia imutável (eventos passados, pais, família), valores de infância e família, crenças, onde há morros, onde há vales. Onde tem ninho de cobra... Deste alto a medida é maior e podemos ver onde nossos caminhos formam círculos viciosos ou virtuosos, onde há luz e sombra em nossa alma. Assim é o canavial da alma do alto. E este é o trabalho da psicoterapia: abrir a escadinha e ajudar alguém a subí-la. Mas isto não é um patrimônio da psicoterapia. Não. O autoconhecimento é um patrimônio de todos, de toda a humanidade. Todas as escadas são válidas, e cada um tem a sua de preferência Todo método para auto-conhecimento, seja terapia, meditação, religiosidade, filosofia, etc são escadas que podem ser abertas. E assim é a jornada, fechar a escada e descer para a lide diária. Se implica em um estreitamento da visão, ao mesmo tempo também se adquire uma cartografia mental de nossas dimensões e limites, que gradualmente se amplia em possibilidades e direções, o que estamos ganhando e procurando diariamente, por onde não se deve ou deve-se ir. Podemos olhar do céu, mas nossos humanos pés precisam tocar o chão. Assim deixo hoje este pequeno recado; que ele ajude cada leitor a estender sua própria escada, torná-la estável, e também leve. Descobrir que o estar perdido é o primeiro passo para encontrar as saídas. Andar no canavial necessita de complacência, persistência e determinação. E quando os caminhos estão cerrados, abri-los. Na faca mesmo. Viver não é preciso, como Pessoa já o disse.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Coisas do Crack, pequenas, pequeninas pedras



“Quizás te diga un día que dejé de quererte, aunque siga queriéndote más allá de la muerte; y acaso no comprendas en esa despedida, que, aunque el amor nos une, nos separa la vida.”
José Angel Buesa



Há quase dois anos o jornal britânico “The Economist” publicou uma reportagem a respeito da “guerra contra as drogas”. Eu tinha esta matéria guardada numa daquelas pastas de arquivos digitais como “coisas que quero ler um dia, mas não sei quando”, e lá ficou sem ser lida até há algumas semanas atrás quando deparei-me com outras matérias sobre o assunto. O curioso da matéria (1) levou-me à lembrança a observação quase comum que o ser humano é um animal que mesmo com a repetição da experiência demora por aprender, e insiste em erros (ou, como disse Joelmir Betting recentemente sobre seu time de futebol de coração: “... afinal, se um economista pode quebrar um país, porque um economista não quebraria o Palmeiras?...”). O fato citado da reportagem é que há um século houve uma reunião de diplomatas na China para tentar estabelecer a proibição do comércio de ópio. Cem anos atrás, repito. Em algumas décadas pouco antes disso, a Inglaterra fez uma guerra contra os chineses porque se achavam os ingleses no direito de vender a mercadoria (ópio) lá na China. Como são humanistas estes britânicos... aqui fomentaram a escravidão e quando esta não mais dava lucro... a combateram!).
Obviamente a reunião diplomática terminou em pizza, ou melhor, para o lugar e época, em algum protótipo de “China in the Box” do século XX em seu início, com provavelmente uma belíssima carta de intenções.
Da geração da minha época de eu-criança pouco se sabia sobre drogas, e elas pouco ainda existiam no cotidiano das pessoas como hoje. Derivados de ópio existiam e eram comercializados como medicamentos, como medicamentos em pastilhas ou gotas com cocaína para dor de dentes e de garganta. Mesmo quando iniciei minha residência médica há 20 anos os dependentes químicos em atendimento eram em sua imensa maioria dependentes de álcool. Cocaína era uma droga cara que foi barateando-se pelas décadas, cada vez mais misturada com talco ou pó de mármore, e a maconha ainda era uma coisa relativamente pouco comum, muito revestida pelo glamour decadente do pessoal ripongo, ex-geração paz-e-amor. Tem coisas que a gente não precisa se envergonhar de admitir publicamente: eu era “cuzão” demais para fumar maconha, e o medo foi minha vantagem depois. Meus neurônios que o digam, pois pretendo ficar com eles por mais uns 50 anos, se der.
De fevereiro de 1909 em Xangai a hoje, no Brasil e no mundo, muitas outras proibições de drogas que alteram o humor e o comportamento se seguiram; novas substâncias e que causam dependência surgiram, ou foram modificadas. Em 1998, a Assembléia Geral da ONU os países membros se comprometeram a alcançar "um mundo livre de drogas" e para "eliminar ou reduzir significativamente" a produção de ópio, cocaína e maconha até 2008 (2).
Sarcasticamente, num humor muito negro, dá para dizer que esta coisa só perde para o sonho do Corínthians em vencer uma Copa Libertadores. Não acredito em um mundo “livre de drogas”. Sejam lícitas ou ilícitas, este critério dificilmente pode ser levado em conta no que se refere à prevenção. Mas este artigo do crack tem bastante relação com minha postagem anterior, com a carta ao ministro da saúde. Em um apanhado de notícias na imprensa sobre a assistência ao doente mental nada temos de animador. Fui até entusiasta demais em minha carta, mas ao pensar melhor, não tivemos nenhuma mudança das políticas da saúde mental e da assistência psiquiátrica; nem teremos. Tivemos somente uma mudança de coordenação, mas a ideologia continua a mesma. E ainda há menos de um ano houve o lançamento do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (3). Nem bem lançado, mal saiu do lugar. De acordo com matéria da Agência Estado, no primeiro ano de sua execução esperava-se investir 90,3 milhões em 2010, mas foi gasto o valor de 1,9 milhões até Dezembro de 2010 (4). É brincadeira...
Crack, em toda a extensão de sua rede potencializa a violência e a sensação subjetiva de estar potencialmente vítima da violência (5). Mas não está tendo a abordagem devida. Causa dependência, uma doença do cérebro. Frita o cérebro, e ovo frito não volta a ser “desfrito”; o dano é permanente. Alguns piram, muitos são assassinados, alguns são presos, outros tantos ficam meio “lesos”; alguns conseguem recuperar-se. Isto tem tudo a ver com a política de saúde mental no Brasil, apesar de não somente com ela. Os números de leitos psiquiátricos fecham sistematicamente (6), com direito a fogos de artifício soltos pelo Ministério da Saúde comemorando a “humanização” do tratamento dado ao doente mental e sua “reinserção na sociedade”. Hospitais públicos fecharam, e abriu-se o paraíso das “comunidades terapêuticas” privadas, com pseudointernações longas, sem assistência médica, muitas sob a orientação de ex-dependentes (ex?), entidades estas que não têm fiscalização, mesmo porque muitas nem existem legalmente e a ANVISA as desconhece. Comunidades onde todos ou quase todos trocam autopiedade, e poucos, muito poucos enchem os bolsos. Médico? Prá quê médico? Então, qual reinserção? Se hospitais fecharam, os CAPs não abriram na mesma proporção e capacidade de funcionamento, e muitos doentes nem sequer conviver em sociedade podem, dada a gravidade da doença mental. Talvez reinserção às ruas e depois, ou à prisão, ou a sete palmos abaixo da superfície, dado que a mortalidade aumentou significativamente (7), em 41% concomitantemente em que 25% de leitos psiquiátricos foram desativados. Dados do próprio MS...
Voltarei mais a este tema futuramente, pois é do interesse de todos, haja visto que, se poucos gozam da sorte privilegiada de não ter algum parente com alguma doença mental, pelo menos um vizinho têm. De perto, ninguém é normal, diz o jargão, mas a maioria tem bons tratamentos, e isto não pode ser perdido de vista. O que acaba de sair do forno sobre o crack é seu lastro de destruição, que, como uma grande sombra do mal, dificilmente é recuperada. Pesquisadores da UNIFESP divulgaram sobre o acompanhamento por 12 anos de dependentes de crack; nada menos que 25% morreu no período, ficando no xilindró outros 12%, e 20% continuavam dependentes (7). 40% livrou-se do crack, mas não dá para dizer que livraram-se do lixo acompanhante a este.
Nas estatísticas mundiais de saúde de 2010 da OMS (8) o Brasil tem na totalidade de seus gastos de saúde somente 40% financiados pelo estado, sendo o restante vindo da iniciativa privada, e, nestes 60% está inclusa a fatia das comunidades terapêuticas espalhadas pelas cidades do interior em fazendas e chácaras. Em 2000 (9) ocupávamos a 125.a colocação no ranking mundial de serviços de saúde pública, o que não anima ninguém. Como ratos e baratas, onde se vê um, pode-se ter certeza da existência de dezenas. E assim está como vejo a situação do crack. Atingiu cidades pequenas, atingiu famílias organizadas e estruturadas emocionalmente.
E agora, José?
O dependente não procura psiquiatras, pois não é louco. E, paradoxalmente, não quer ficar “dopado”; acredite se quiser. Num país míope desde as esferas de administração federal, como criticar uma postura assim tacanha sem descer do salto? Não sei a saída. que seja melhor que a foto abaixo...

(1) How to stop the drug wars - Prohibition has failed; legalisation is the least bad solution; http://www.economist.com/node/13237193?Story_ID=13237193
(2) http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1036459-5602,00-PAISES+DA+ONU+DEFINEM+ESTRATEGIA+SOBRE+DROGAS+COM+VETO+DOS+EUA.html
(3) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7179.htm
(4) http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/12/725061-plano+de+enfrentamento+a+crack+tem+execucao+de+2.html
(5) http://www.uniad.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6904:violencia-e-crack-atormentam-brasileiros&catid=1:jogo-limpo-noticias&Itemid=167
(6) Camara, F.P. Mortalidade por transtornos mentais e comportamentais e a reforma psiquiátrica no Brasil contemporâneo. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 278-285, junho 2008.
(7) http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/02/apos-12-anos-29-dos-usuarios-abandonam-o-crack.html
(8) http://www.who.int/whosis/whostat/ES_WHS10_Full.pdf
(9) World Health Report (2000) Organização Mundial de Saúde, pp153.