INTRODUÇÃO
Eu deixei meu trabalho no município de Mairinque, SP, em Março de 2009;
nunca me arrependi. Tampouco arrependi-me de ter exercido (e dela sair) a chefia de saúde
mental em São Roque, município vizinho, onde participei da criação e chefiei o
CAPs local. O artigo abaixo foi publicado no jornal “Folha de Mairynk” em 18 de
Julho de 2009; foi por puro esquecimento que somente lembrei-me dele agora. Ou talvez
por ato falho. Por várias vezes pude afirmar amiúde com alguns amigos: “sabe
quando Mairinque terá novamente dois psiquiatras pesquisadores do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP em seu quadro de funcionários?
com o mesmo salário de outro médico sem tanta especialização? Nunca...”. O segundo era meu colega e amigo Dr. Jorge Henna. E isto foi dito com
muita naturalidade, sem também tom profético; tomara até que eu erre. De qualquer modo acho que o
artigo merece estar aqui no meu blog. Eu não desisti de trabalhar lá; apenas
fui convencido por uma chefia de saúde burra e incompetente, por uma
administração municipal semelhante, de que não valeria mais a pena desperdiçar suor
por tão pouco, inclusive o salário.
Mas segue o artigo, que apesar de mais de dois anos, continua atual, e
muito.
“Au Revoir”, Mairinque!
"Tudo tem o seu
tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu
Há tempo de nascer, e
tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou.”
Eclesiastes, 3:1-2
Foi em 1998 que comecei a trabalhar em Mairinque; e concursado desde 2000. Ali, no posto de saúde da Vila Sorocabana.
Preciso avisar, contudo: estou saindo. Muitas coisas mudaram nesses anos, e foram extremamente produtivos. Já não sou visto apenas como “médico de loucos” como costumava ser o jargão popular aqui, compartilhado até por gente culta. Isto é muito bom. Mas o serviço aumentou sua demanda a ponto de se tornar ineficiente. Apesar das aparências, esta ineficiência não foi totalmente um reflexo de políticas locais. Não. Faz parte do que ocorre com a Psiquiatria no Brasil todo. Podia ainda ter sido melhor aqui em Mairinque, entretanto.
Temos
no município um serviço que não é autônomo, e não é planejado a longo-prazo,
sem articulação desejável com outros serviços médicos dentro do próprio município
ou fora dele, e sem consistência interna em suas atividades. Quando escrevo
aqui sobre consistência interna especificamente faço referência ao fato do
ambulatório de psiquiatria ter sido conduzido apenas por mim enquanto médico especialista
nos últimos anos. Nem cabe aqui mencionar colegas que chegaram, olharam, e não
ficaram, com a lacônica frase “não vale a pena!”.
Nestes
anos sempre fui muito “reclamão” (provavelmente meus pacientes nem saibam disso)
com minhas chefias, acreditando eu que persistir na exigência de melhores
condições de trabalho e tratamento fosse apenas parte do necessário e
minimamente aceitável. Talvez por isso fosse considerado chato demais, ou sério
demais.
Mas
não acho aceitável permanecer só neste serviço. Não acho aceitável submeter
meus pacientes a retornos extremamente prolongados, consultas sem tempo
adequado para a entrevista, simplesmente porque não há outro médico psiquiatra
para trabalhar aqui. Não acho aceitável ter que ficar modificando tratamentos
simplesmente porque os medicamentos estão em falta constante. Não acho
aceitável não poder contar com uma equipe mínima de profissionais a dar apoio
ao tratamento psiquiátrico em suas várias formas.
Sou
um bom médico, e um bom especialista. Nisto não há nenhuma, absolutamente
nenhuma soberba em reconhecê-lo em mim mesmo. Por isso também, não acho
aceitável não poder exercer uma boa medicina aqui. Estou sendo ético com os
princípios de minha profissão, com meu juramento.
Todas
as dificuldades somaram-se nesses anos ao fato de que a psiquiatria lida com
doenças crônicas e persistentes, muitas incuráveis e incapacitantes, como
esquizofrenia e transtorno bipolar, nossa eficiência é de fato baixa. Mas não
mais baixa que outras especialidades médicas. Mas a psiquiatria não é uma
especialidade como as outras, envolve particularidades da vida íntima de cada
um, o sofrimento invisível e não detectável na maioria de exames. A doença
mental não é uma coisa isolada. Está em todos nós. Ela quase é contagiosa, pois
acaba por afetar toda a família também. Ninguém sofre de uma doença mental
sozinho.
Assim,
apesar de eu ter permanecido nessa longa jornada ao serviço dos pacientes de
Mairinque, cansei. Cansei de ser “reclamão” e de ouvir “não” para solicitações
que são corretas e necessárias, ou de ouvir desculpas infantis de que “as
dificuldades são muitas, mas serão resolvidas”. Claro que eu sei que as
dificuldades são muitas. Afinal de contas eu estava no “front” da batalha. Cansei
de ser chato e cansei de esperar por atitudes sérias e que estão acima da minha
esfera de atuação. Cansei também esperar mudanças da vontade política na saúde a
cada gestão que se passa, com as coisas sempre sendo feitas da mesma maneira e
as cores desbotando pela falta de cuidado.
Cansei
de ver gente aparentemente qualificada na administração pública municipal
considerar doenças mentais como “frescuras” ou “fraqueza de caráter”, ou “falta
do que fazer”, vindo por vezes mesmo de chefes de departamentos ou até de colegas
médicos, mas estes, felizmente estes casos isolados.
Por
estas razões estou saindo, e com a amarga melancolia de não ter realizado o que
desejava a longo prazo. E não por falta de capacidade ou persistência; foram 10
anos, afinal.
“Au
revoir”, Mairinque!
Jamais
me esquecerei das pessoas que deram apoio trabalhando ao meu lado; todas elas.
Principalmente, guardarei eternamente a lembrança de meus pacientes a quem
procurei atender da melhor maneira possível, e seus familiares. E levarei meu
agradecimento por todas estas pessoas que procuraram minha ajuda médica por
todos os meus dias. Guardarei a honra de ter podido ser testemunha e confidente
de tantas e tantas histórias de emoções, de vida. Elas me ensinaram mais, muito
mais sobre o ser humano do que pode ser aprendido em livros ou nas faculdades,
ou nas igrejas. Obrigado aos meus pacientes que também ensinaram-me não somente
sobre o merecimento da vida ser vivida, mas sobre a superação dos obstáculos.
Ensinaram-me
a ser humilde e perceber minhas limitações humanas e nossa pequenez diante do
universo.
Agora
é hora de levantar e partir, deixar a cidade, sem mais desejo de um pouco de conforto profissional.
Partir em busca de
outros desafios, em algum lugar qualquer.
“Au
revoir”, Mairinque!
Marcelo Lourenço de Toledo
Médico
Psiquiatra
Membro
da Associação Brasileira de Psiquiatria, analista junguiano
Médico
pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP