quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Coisas do Crack, pequenas, pequeninas pedras



“Quizás te diga un día que dejé de quererte, aunque siga queriéndote más allá de la muerte; y acaso no comprendas en esa despedida, que, aunque el amor nos une, nos separa la vida.”
José Angel Buesa



Há quase dois anos o jornal britânico “The Economist” publicou uma reportagem a respeito da “guerra contra as drogas”. Eu tinha esta matéria guardada numa daquelas pastas de arquivos digitais como “coisas que quero ler um dia, mas não sei quando”, e lá ficou sem ser lida até há algumas semanas atrás quando deparei-me com outras matérias sobre o assunto. O curioso da matéria (1) levou-me à lembrança a observação quase comum que o ser humano é um animal que mesmo com a repetição da experiência demora por aprender, e insiste em erros (ou, como disse Joelmir Betting recentemente sobre seu time de futebol de coração: “... afinal, se um economista pode quebrar um país, porque um economista não quebraria o Palmeiras?...”). O fato citado da reportagem é que há um século houve uma reunião de diplomatas na China para tentar estabelecer a proibição do comércio de ópio. Cem anos atrás, repito. Em algumas décadas pouco antes disso, a Inglaterra fez uma guerra contra os chineses porque se achavam os ingleses no direito de vender a mercadoria (ópio) lá na China. Como são humanistas estes britânicos... aqui fomentaram a escravidão e quando esta não mais dava lucro... a combateram!).
Obviamente a reunião diplomática terminou em pizza, ou melhor, para o lugar e época, em algum protótipo de “China in the Box” do século XX em seu início, com provavelmente uma belíssima carta de intenções.
Da geração da minha época de eu-criança pouco se sabia sobre drogas, e elas pouco ainda existiam no cotidiano das pessoas como hoje. Derivados de ópio existiam e eram comercializados como medicamentos, como medicamentos em pastilhas ou gotas com cocaína para dor de dentes e de garganta. Mesmo quando iniciei minha residência médica há 20 anos os dependentes químicos em atendimento eram em sua imensa maioria dependentes de álcool. Cocaína era uma droga cara que foi barateando-se pelas décadas, cada vez mais misturada com talco ou pó de mármore, e a maconha ainda era uma coisa relativamente pouco comum, muito revestida pelo glamour decadente do pessoal ripongo, ex-geração paz-e-amor. Tem coisas que a gente não precisa se envergonhar de admitir publicamente: eu era “cuzão” demais para fumar maconha, e o medo foi minha vantagem depois. Meus neurônios que o digam, pois pretendo ficar com eles por mais uns 50 anos, se der.
De fevereiro de 1909 em Xangai a hoje, no Brasil e no mundo, muitas outras proibições de drogas que alteram o humor e o comportamento se seguiram; novas substâncias e que causam dependência surgiram, ou foram modificadas. Em 1998, a Assembléia Geral da ONU os países membros se comprometeram a alcançar "um mundo livre de drogas" e para "eliminar ou reduzir significativamente" a produção de ópio, cocaína e maconha até 2008 (2).
Sarcasticamente, num humor muito negro, dá para dizer que esta coisa só perde para o sonho do Corínthians em vencer uma Copa Libertadores. Não acredito em um mundo “livre de drogas”. Sejam lícitas ou ilícitas, este critério dificilmente pode ser levado em conta no que se refere à prevenção. Mas este artigo do crack tem bastante relação com minha postagem anterior, com a carta ao ministro da saúde. Em um apanhado de notícias na imprensa sobre a assistência ao doente mental nada temos de animador. Fui até entusiasta demais em minha carta, mas ao pensar melhor, não tivemos nenhuma mudança das políticas da saúde mental e da assistência psiquiátrica; nem teremos. Tivemos somente uma mudança de coordenação, mas a ideologia continua a mesma. E ainda há menos de um ano houve o lançamento do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (3). Nem bem lançado, mal saiu do lugar. De acordo com matéria da Agência Estado, no primeiro ano de sua execução esperava-se investir 90,3 milhões em 2010, mas foi gasto o valor de 1,9 milhões até Dezembro de 2010 (4). É brincadeira...
Crack, em toda a extensão de sua rede potencializa a violência e a sensação subjetiva de estar potencialmente vítima da violência (5). Mas não está tendo a abordagem devida. Causa dependência, uma doença do cérebro. Frita o cérebro, e ovo frito não volta a ser “desfrito”; o dano é permanente. Alguns piram, muitos são assassinados, alguns são presos, outros tantos ficam meio “lesos”; alguns conseguem recuperar-se. Isto tem tudo a ver com a política de saúde mental no Brasil, apesar de não somente com ela. Os números de leitos psiquiátricos fecham sistematicamente (6), com direito a fogos de artifício soltos pelo Ministério da Saúde comemorando a “humanização” do tratamento dado ao doente mental e sua “reinserção na sociedade”. Hospitais públicos fecharam, e abriu-se o paraíso das “comunidades terapêuticas” privadas, com pseudointernações longas, sem assistência médica, muitas sob a orientação de ex-dependentes (ex?), entidades estas que não têm fiscalização, mesmo porque muitas nem existem legalmente e a ANVISA as desconhece. Comunidades onde todos ou quase todos trocam autopiedade, e poucos, muito poucos enchem os bolsos. Médico? Prá quê médico? Então, qual reinserção? Se hospitais fecharam, os CAPs não abriram na mesma proporção e capacidade de funcionamento, e muitos doentes nem sequer conviver em sociedade podem, dada a gravidade da doença mental. Talvez reinserção às ruas e depois, ou à prisão, ou a sete palmos abaixo da superfície, dado que a mortalidade aumentou significativamente (7), em 41% concomitantemente em que 25% de leitos psiquiátricos foram desativados. Dados do próprio MS...
Voltarei mais a este tema futuramente, pois é do interesse de todos, haja visto que, se poucos gozam da sorte privilegiada de não ter algum parente com alguma doença mental, pelo menos um vizinho têm. De perto, ninguém é normal, diz o jargão, mas a maioria tem bons tratamentos, e isto não pode ser perdido de vista. O que acaba de sair do forno sobre o crack é seu lastro de destruição, que, como uma grande sombra do mal, dificilmente é recuperada. Pesquisadores da UNIFESP divulgaram sobre o acompanhamento por 12 anos de dependentes de crack; nada menos que 25% morreu no período, ficando no xilindró outros 12%, e 20% continuavam dependentes (7). 40% livrou-se do crack, mas não dá para dizer que livraram-se do lixo acompanhante a este.
Nas estatísticas mundiais de saúde de 2010 da OMS (8) o Brasil tem na totalidade de seus gastos de saúde somente 40% financiados pelo estado, sendo o restante vindo da iniciativa privada, e, nestes 60% está inclusa a fatia das comunidades terapêuticas espalhadas pelas cidades do interior em fazendas e chácaras. Em 2000 (9) ocupávamos a 125.a colocação no ranking mundial de serviços de saúde pública, o que não anima ninguém. Como ratos e baratas, onde se vê um, pode-se ter certeza da existência de dezenas. E assim está como vejo a situação do crack. Atingiu cidades pequenas, atingiu famílias organizadas e estruturadas emocionalmente.
E agora, José?
O dependente não procura psiquiatras, pois não é louco. E, paradoxalmente, não quer ficar “dopado”; acredite se quiser. Num país míope desde as esferas de administração federal, como criticar uma postura assim tacanha sem descer do salto? Não sei a saída. que seja melhor que a foto abaixo...

(1) How to stop the drug wars - Prohibition has failed; legalisation is the least bad solution; http://www.economist.com/node/13237193?Story_ID=13237193
(2) http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1036459-5602,00-PAISES+DA+ONU+DEFINEM+ESTRATEGIA+SOBRE+DROGAS+COM+VETO+DOS+EUA.html
(3) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7179.htm
(4) http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/12/725061-plano+de+enfrentamento+a+crack+tem+execucao+de+2.html
(5) http://www.uniad.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6904:violencia-e-crack-atormentam-brasileiros&catid=1:jogo-limpo-noticias&Itemid=167
(6) Camara, F.P. Mortalidade por transtornos mentais e comportamentais e a reforma psiquiátrica no Brasil contemporâneo. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 2, p. 278-285, junho 2008.
(7) http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/02/apos-12-anos-29-dos-usuarios-abandonam-o-crack.html
(8) http://www.who.int/whosis/whostat/ES_WHS10_Full.pdf
(9) World Health Report (2000) Organização Mundial de Saúde, pp153.

Um comentário:

  1. Caro Dr. Lourenço! Podemos não mudar o mundo, mas, também ninguém poderá dizer que não fizemos a nossa parte. Very god! Abraços.

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